Opinião

Democracia sustentável

Cultura autoritária herdada por colonizadores é um dos entraves para as políticas redistributivas na América Latina e Caribe

Pier Paolo Pasolini durante as filmagens de "O Evangelho segundo Mateus". Crédito: Divulgação Pier Paolo Pasolini durante as filmagens de "O Evangelho segundo Mateus".
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Um dos desafios para a América Latina e o Caribe é a sustentabilidade democrática.

A região tem conhecido períodos de bonança democrática, que são sucedidos por tempestades autoritárias, algumas veladas, como os golpes parlamentares.

Qual seria o antídoto para essa doença regional?

Em primeiro lugar, não resta dúvida de que a geopolítica tem papel decisivo. Para os que não assistiram o filme “Snowden”, de Oliver Stone, recomendo vivamente que o façam. Nele, o jovem e genial criador do sistema de espionagem eletrônica da CIA, Edward Snowden – atualmente exilado na Rússia por ter denunciado a forma aberrante com que foi utilizado – demonstra, com dados, que o país mais espionado por aquela agência estadunidense, em 2015, foi o Brasil e que o objetivo principal da arapongagem era a Petrobras. À luz da película, tudo o que ocorreu depois faz ainda mais sentido.

Entretanto, como todos os desastres, as rupturas institucionais, os golpes de estado, não têm uma causa única. Por definição, são multicausais, ou não seriam acidentes, mas apenas incidentes, quando há uma única causa, dela resultando menor gravidade.

Valendo-se da cultura como principal condutor da análise política, cabe hipnotizar que a carência de sustentabilidade democrática regional também é consequência da cultura autoritária que herdamos dos colonizadores. Estados, partidos e demais instituições públicas e privadas se ressentem da participação popular, debilitando a compreensão, pela população, até mesmo dos benefícios gerados pelas próprias políticas. Consequentemente, no momento em que são postas em xeque, carece a necessária reação popular; por não terem sido planejadas, executadas, monitoradas e avaliadas conjuntamente, carece a devida apropriação por parte dos beneficiários.

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A campanha da fraternidade de 2019, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), terá como tema as políticas públicas e será interessante ver como abordará a questão da participação popular.

Vemos que esse debate também se estende à economia, em que dois modelos se contrapõem em âmbito nacional e internacional. Por um lado, um projeto de inclusão dos mais empobrecidos; por outro, a crença de que os incentivos fiscais aos mais ricos estimularão os investimentos.

O recente relatório da organização não-governamental Oxfam, lançado no dia 21 do corrente mês, às vésperas da abertura do Fórum Econômico Mundial de Davos lança algumas luzes – ou trevas, se preferirmos – sobre o tema.

Os dados chocam pela crueldade: o patrimônio das 26 pessoas mais ricas do mundo equivale àquele da metade da população mundial – 3,8 bilhões de pessoas. A fortuna dos bilionários aumentou 12% em 2018, enquanto que a metade mais pobre do planeta – 3,8 bilhões de pessoas – viu sua riqueza diminuída em 11%. Quase metade da população do mundo – 3,4 bilhões de pessoas – está vivendo com menos de US$ 5,50 por dia, enquanto o número de bilionários nunca foi tão grande. O 1% mais rico da América Latina e Caribe concentra 40% da riqueza da região. Em países como o Brasil e o Reino Unido, os 10% mais pobres estão pagando uma proporção maior de impostos do que os 10% mais ricos. Homens têm 50% mais do total de riqueza no mundo do que as mulheres; em âmbito global, as mulheres ganham 23% menos do que os homens.

São números que não comportam dúvidas: a estratégia de concentrar renda para depois distribui-la – já tentada no Brasil durante a ditadura cívico-militar – fracassou rotundamente, colocando em risco a sobrevivência de metade da população mundial, principalmente mulheres e crianças, pois as mulheres continuam sendo as principais cuidadoras.

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Coloca-se, portanto, o desafio de políticas redistributivas, com forte participação no planejamento, na execução, no monitoramento e na avaliação das mesmas. Isso, evidentemente, também vale para a política externa, por se tratar de política pública.

No campo da participação, a cultura também permeia as ideologias: Geraldo Alckmin (PSDB) foi o único governador a implementar um conselho de política externa, secretariado pelo embaixador Rubens Ricupero. A Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS) conta com Conselho de Comércio Internacional. O Plano de Emergência da Frente Brasil Popular, no último parágrafo, nr. 77, propõe a criação de um Conselho de Política Externa (Conpeb).

Em contrassenso, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto em janeiro do corrente ano, sendo talvez o conselho mais participativo da República e um modelo internacionalmente emulado tanto pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) quanto por vários países individualmente, das Américas, da África e da Ásia.

Graças ao Consea foi possível inserir no artigo sexto da Constituição o direito à alimentação como direito humano e garantir que 30% das compras do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) fossem feitas da agricultura familiar, garantindo para os alunos produtos mais sadios e frescos, gerando, ainda, renda para suas famílias, por meio da comercialização da produção familiar.

No entanto, no Brasil e no mundo, aumenta a fome sem que haja qualquer tipo de ganho, pois o desenvolvimento socioeconômico nada tem a ver com a soma zero “vida minha, morte tua”, do bordão latino. Ao contrário, faz-se justamente em ganho mútuo de ricos e pobres, pois como bem observou o grande médico sanitarista Josué de Castro, presidente do Conselho Independente da FAO, na década de 50, metade do mundo não dorme por ter fome e a outra, por medo dos famintos.

Corroborando esse entendimento, o cineasta Pier Paolo Pasolini, na última entrevista que concedeu ao jornalista Furio Colombo em 1 de novembro de 1975, horas antes de ser assassinado na madrugada, observou que estamos todos em perigo: os oprimidos, pela própria condição, mas também os opressores, pela insustentabilidade possessória a que reduzem suas vidas.

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