Marjorie Marona

Professora de Ciência Política da UNIRIO e pesquisadora do QualiGov - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável.

Opinião

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Democracia autossustentável

Duas linhas de ação: a desarticulação da rede de desinformação e a reversão na tendência de politização do Judiciário

Democracia autossustentável
Democracia autossustentável
O presidente Lula. Foto: Arisson Marinho/AFP
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À porta dos cem primeiros dias de governo, Lula ainda tem se desincumbido da tarefa básica de construir governabilidade. A cartilha das democracias liberais recomendaria, de fato, esforços nessa direção a qualquer governo eleito, mas Lula 3 não é qualquer governo. À reconstrução de políticas públicas que possam reduzir os alarmantes índices de pobreza e desigualdade social, de gênero, étnica e racial e, ainda, retomar o desenvolvimento econômico, soma-se a empreitada nada elementar de retomar a normalidade.

Se os criminosos atos de 8 de janeiro não foram suficientes para elucidar a persistência dos riscos de retrocesso, algumas pesquisas de opinião apontam para o renitente apoio a medidas antidemocráticas. Em resposta, Lula 3 tem adiantado a discussão sobre a necessidade de construção de mecanismos institucionais de reforço da cultura democrática. A ideia de democracia militante (ou defensiva) voltou à cena em um contexto de instabilidade das democracias em todo o mundo, pela ascensão eleitoral de lideranças autocráticas que avançam, progressivamente, sobre o conteúdo liberal das Constituições, mobilizando, não raro, o próprio aparato legal. Depois de vencer as eleições, essas lideranças mobilizam estratégias legais para atacar a liberdade e a dignidade individuais e afastar os mecanismos de controle público sobre seu governo. Avessos à institucionalidade, costumam avançar sobre o Judiciário, a mídia, os órgãos de controle e as instituições eleitorais, promovendo discursos de ódio e intolerância, articulados por uma rede de desinformação, entrincheirados em uma concepção distorcida de liberdade de expressão. Qualquer semelhança com o governo Bolsonaro não é mera coincidência.

A construção de uma democracia autossustentável é, pois, tarefa urgente, para evitar que o bolsonarismo inconformado emerja novamente das sombras. Empreitada que ultrapassa o período do terceiro mandato de Lula e demanda engajamento de uma parcela mais ampla da elite política nacional e da opinião pública é, sem dúvida, agenda inafastável do atual governo. Assim, a desarticulação da rede de desinformação e a reversão na tendência de politização do Judiciário são duas importantes linhas de ação.

O Ministério da Justiça organizou o Pacote da Democracia, proposta de defesa do Estado Democrático de Direito que intensifica as sanções a pessoas físicas e jurídicas, incluídas as plataformas digitais, que atentarem contra a democracia, financiarem atos antidemocráticos e/ou deixarem de atuar no combate a esse tipo de ação criminosa. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania criou um Grupo de Trabalho com o objetivo de estudar e discutir estratégias para combater o discurso de ódio e desestimular o extremismo. A plêiade de iniciativas governamentais ecoa sintonia com as demandas dos novos tempos. Resta pouco espaço para tergiversação acerca da necessidade de enfrentamento das práticas digitais de manipulação inescrupulosa da informação.

A construção de um aparato estatal com tal objetivo, em uma sociedade dividida e polarizada, enfrenta, contudo, enormes desafios relacionados, especialmente, à desconfiança acerca da competência epistêmica em assuntos morais por parte do governo de plantão. Não são poucos os que apontam para os riscos associados à discussão apressada sobre limitação às liberdades públicas consagradas na Constituição, particularmente diante da possibilidade de assédio judicial contra críticos e opositores.

Esse último ponto remete, especialmente, à criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, por iniciativa de Jorge Messias, o Advogado-Geral da União – talvez o exemplo mais ilustrativo dos esforços do governo no sentido de institucionalizar práticas de democracia defensiva, promovendo respostas judiciais e extrajudiciais a medidas de desinformação, a investidas à eficácia de políticas públicas, à harmonia entre os Poderes da República, e aos discursos de ódio e intolerância.

A estruturação de um aparato de litigância estratégica, ainda que com a mais nobre missão de defender a democracia, fez soar os alarmes acerca dos riscos de politização do Judiciário. E, de quebra, deu munição para que opositores, mais ou menos extremados, passassem, maliciosamente, a tratar a iniciativa como um indicador das intenções autoritárias e persecutórias do novo governo, fazendo-o provar do próprio veneno.

A plena democracia demanda a reconstrução da imagem pública de um Judiciá­rio independente e íntegro. A exigência materializa-se, sobretudo, no desempenho do Supremo Tribunal Federal. Não por outra razão, as duas indicações de Lula à Corte devem estar imbuídas desse espírito, para além das preocupações com representatividade e governabilidade, sacrificando, talvez, suas preferências pessoais. •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Democracia autossustentável’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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