Carlos Bocuhy

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Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, o Proam.

Opinião

Dedos da morte

O estado de anormalidade legal na área ambiental brasileira é assombroso

A Amazônia agoniza, Brasília regozija-se - Imagem: Bruno Kelly/Amazônia Real
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O desaparecimento na Amazônia do jornalista britânico Dom Phillips e de Bruno Pereira, um dos maiores especialistas em comunidades indígenas, não deixa dúvidas sobre o estado de criminalidade que toma conta hoje daquela região. Phillips escrevia um livro sobre a Floresta Amazônica e há fortes indicações de que ele e o indigenista brasileiro foram assassinados. O fato, que continua a repercutir em todo o mundo, mostra a contínua exploração predatória que possivelmente acabou por vitimar Phillips e Pereira no Vale do Javari, no oeste do estado do Amazonas.

A demora das autoridades brasileiras em adotar medidas mais efetivas diante do desaparecimento, que só ocorreram após forte pressão internacional, demonstra mais uma vez a leniência e a omissão governamental. De forma contumaz, o governo não age ou demora para agir. No presente caso, demorou 72 horas para enviar equipes de busca, enquanto o presidente Jair Bolsonaro declarava, de forma leviana e irresponsável, que o jornalismo investigativo de Dom Phillips seria “uma aventura”.

O estado de anormalidade legal na área ambiental brasileira é evidente. O experiente delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva, com atuação de longa data na Amazônia, tem repetido com frequência que o maior estimulador da criminalidade é a ausência de guardião, da falta da presença do Estado, e que este é um dos fatores provocadores dos altos índices de criminalidade existentes na região.

Os efeitos antipedagógicos provocados com as posturas nefastas do mandatário da nação geram sentimento de impunidade e estimulam a criminalidade. As consequências que ocorrem em larga escala são inaceitáveis. Milhares e milhares de quilômetros quadrados da floresta são devastados todos os anos. No último dia 31 de maio, o cientista Carlos Nobre, diante dos avanços de “savanização” da Amazônia, afirmou em entrevista à TV Deutsche Welle, da Alemanha: “No sul da Amazônia estamos na beira do precipício deste ponto de não retorno”.

Depois de sucessivas médias históricas de desmatamento a atual beira os mil quilômetros quadrados mensais, essa afirmativa não é nenhum exagero. Somam-se a essa preocupação as pesquisas de Luciana­ Gatti, do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), que demonstram a perda de capacidade da floresta em sequestrar carbono, especialmente em seu lado oriental.

O desaparecimento de Phillips e Pereira guarda profunda relação com a ausência do Poder Público e sua incapacidade de manter a ordem. Caracteriza-se um Estado de Coisas Inconstitucional que assola a área ambiental do Brasil, como disse a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Esse quadro generalizado é alimentado por uma sequência de omissões, estímulos e incompetência. Essa última, caracterizando um processo de caquistocracia, citada pela ministra do STF, ou seja, um governo dos piores.

O aumento da criminalidade na Amazônia acirrou-se não apenas em razão da omissão governamental, mas como reflexo imediato da simpatia incompreensível e inaceitável de um mandatário da nação brasileira para com a ilegalidade que assola a Amazônia, seja na extração da madeira, no garimpo ou nas atividades agropecuárias. As iniciativas isoladas de degradação tomaram maior vulto com os discursos de incentivo à exploração da Amazônia. Estimularam um estágio ampliado de crime organizado, como foi protagonizado no “dia do fogo” ou mesmo por centenas de barcaças estacionadas no Rio Madeira que, em um ato de insurreição criminosa, estabeleceram uma barreira em que pretendiam enfrentar a polícia.

É PRECISO DIZER A BOLSONARO QUE A AMAZÔNIA É NOSSA, NÃO DELE

A bem do Brasil será preciso encerrar essa forma inconveniente e irresponsável com que Jair Bolsonaro tem tratado as questões ambientais. Sua proposta ao ex-vice-presidente norte-americano Al Gore para “explorar a Amazônia juntamente com os Estados Unidos” foi registrada em Davos, provocando a resposta perplexa de Gore: “Não entendi muito bem o que você quis dizer”.

A imagem do Brasil no exterior continua a desabar, desta vez em razão dos insistentes apelos pela vida de dois extraordinários defensores da floresta, de sua biodiversidade e de seus povos.

As dimensões do problema ambiental são bem maiores do que eram quando Bolsonaro assumiu a Presidência. Vivemos um estado de emergência climática, conforme revela o último relatório (AR6) do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas. A Amazônia é um dos mais importantes reguladores climáticos da linha do Equador. As mudanças climáticas seguem em ritmo acelerado, acima do que era previsto na Conferência de Paris, que estabeleceu o limite máximo em 1,5 grau Celsius de aquecimento global, limite que está prestes a ser rompido.

O Brasil e o mundo pagarão muito caro pelas omissões e o incentivo à degradação da Amazônia protagonizada por Bolsonaro. Há uma sequência infindável de fatos lesivos ao patrimônio ambiental brasileiro, à qual soma-se agora o sacrifício de seus defensores. Já houve uma negativa do Brasil em assinar o Acordo de Escazú, que entrou em vigor neste ano. O acordo visa maior transparência nos atos da governança ambiental, para promover meios de efetivo controle social e a proteção dos defensores do meio ambiente. O argumento utilizado pelo governo para não proceder à ratificação foi de que o acordo representava uma ingerência na soberania brasileira.

Em coletiva de imprensa ocorrida em 2019, Dom Phillips perguntou a Bolsonaro sobre a imagem do Brasil com o aumento do desmatamento, ao que Bolsonaro agressivamente respondeu: “A Amazônia é nossa, não sua”.

É preciso dizer a Bolsonaro que a Amazônia é nossa, não dele. Pertence ao povo brasileiro e às futuras gerações. Pertence também à humanidade, conforme estabelece o Princípio 2 da Declaração do Rio, promulgada em 1992, que estabelece o direito soberano aos recursos naturais desde que seu uso seja responsável e não venha a afetar direitos internacionalmente estabelecidos. O Brasil tem o compromisso legal de cumprir os acordos que ratificou, de proteção à biodiversidade, ao clima, contra a desertificação e de respeito aos direitos humanos. •


*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Dedos da morte”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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