Crônica de uma morte não anunciada

'A notícia chegou no domingo cedo, minha mãe com o olhar assustado anunciou que Osvaldo havia sido assassinado'

Foto: Arquivo pessoal

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Osvaldo ficava impressionado com o capricho com que cuidávamos, eu e meu irmão, da criação de pombos. Todos eram registrados num caderno de capa dura, data de nascimento, nome, nome do pai e da mãe: Asa Branca, filho de Marronzinho e Branquinha, Pintada, filha de Preta e Aleijadinho.

Osvaldo prometeu, naquela tarde, que no dia seguinte, um domingo, ele iria ao Mercado Central comprar um casal de pombos japoneses, como chamávamos as pombas da raça coleirinha, nosso sonho. Elas custavam caro e a gente só as observava em gaiolas no corredor de bichos vivos do Mercado Central.

Lavamos o pombal com Creolina e sabão português e deixamos tudo prontinho para receber o casal de pombos japoneses prometido por Osvaldo.

Não dormi aquela noite, aflito e ansioso nos meus 12 anos de idade, só pensando nas pombinhas no meu pombal.

A notícia chegou no domingo cedo, minha mãe com o olhar assustado anunciou que Osvaldo havia sido assassinado num pequeno hotel no centro de Belo Horizonte. O corpo apareceu caído no corredor do hotel, com um único tiro. Minha mãe repetia sem parar:

“Não levaram nada, o dinheiro que ele tinha na carteira, o relógio no pulso, o lenço de pano no bolso de trás da calça, o pente, os documentos, nada”.


O que aumentava o mistério.

Osvaldo trabalhava com o meu pai no Serviço de Meteorologia, mas sabíamos pouco dele. Nunca o vimos com namorada, não sabíamos quem eram os pais dele, se tinha irmãos ou parentes. Só sabíamos que ele era de Ouro Preto.

Numa época de vacas magras, Osvaldo morou no quarto que havia no porão da nossa casa, no bairro do Carmo. Foi nessa época que ele passou a ensinar francês para minha irmã mais velha, que estudava no Colégio Sion. Nunca soubemos onde Osvaldo aprendera francês, uma língua requintada na época.

Mataram Osvaldo!

Nenhuma linha nos jornais, nunca soubemos se houve perícia ou investigação sobre o caso. Ele foi enterrado em Ouro Preto e a cena que ficou na memória foi a de Maria Ferreira, colega de Meteorologia, que levou para o velório uma cesta de salgadinhos – empadas, coxinhas, pasteizinhos português e quibes – e algumas garrafas de pinga. Era a última homenagem a Osvaldo, que adorava uma pinguinha mineira, todos os dias ao cair da tarde.

Osvaldo morto, minha mãe começou a sonhar com ele.

Contou para ela, aflita que estava sem saber onde estava a carteira que perdera, cheia de dinheiro e documentos.

“Está dentro da poltrona de couro, lá na repartição!”, disse ele no sonho. Minha mãe acordou assustada e, ao chegar o serviço, o meu pai pediu ajuda a Mateus para revirar o sofá. Reviraram e a carteira caiu no chão.

Minha irmã estava ansiosa com a prova oral que teria no dia seguinte, quando minha mãe acordou e disse a ela: “Sonhei com Osvaldo dizendo que cairia o ponto de número 9”. Era uma época em que as pessoas estudavam pontos e, na hora da prova oral, retiravam um número de um saquinho de pano e tinham que dissertar sobre o assunto.

Minha irmã decorou o ponto de número 9 e, quando retirou o papel do fundo do saco, ficou pálida ao ponto de a freira perguntar se ela estava bem. Sim, ela se recuperou e recitou o ponto 9, de cabo a rabo. Nota 10.

Minha mãe sonhou com Osvaldo dizendo que ele teria de ir embora à meia noite em ponto. Sobressaltada, ela acordou e, segundos depois, ouviu as 12 baladas do relógio que ficava na copa da minha casa.

O último sonho que minha mãe teve com Osvaldo, antes dela morrer, foi com ele dizendo claramente: Quem me matou foi o Ricardo!


“Que Ricardo?”, perguntou ela. Ele não respondeu.

Seis décadas depois, minha paixão ainda são as pombas coleirinha que vejo ciscando na Praça Cornélia, livres, leves e soltas. Mas a a dúvida nunca saiu do meu pensamento:

Que Ricardo?

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