Eugênio Aragão

Advogado, ex-ministro da Justiça e professor da UnB

Opinião

Constituição golpeada

A extrema-direita quer avançar sobre consensos democraticamente construídos, para, na falta de votos para governar, inviabilizar o governo eleito

Foto: Carlos Moura/SCO/STF
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A Constituição de 1988 foi o pacto político possível a seu tempo. Um tempo em que a sociedade ainda conseguia fazer pactos. Não é perfeita. Não é imutável. Pode e deve ser adaptada às necessidades que vão se apresentando ao longo do processo histórico. Mas também não deve sucumbir ao circunstancial. Mudar a Constituição na sua materialidade é tarefa espinhosa, ainda mais quando muitos de seus dispositivos sequer foram regulamentados através da legislação infraconstitucional própria.

Em tempos de polarização política, em que consensos são quase impossíveis, a lei maior deve servir de farol de intensa luz no mar noturno revolto. O circunstancial fica para a interpretação, para a hermenêutica. Esta, sim, pode ser mais flexível, na medida certa para atender às demandas do varejo cotidiano.

Mas há os que não têm apego – e muito menos fidelidade – à Constituição. Querem participar do espaço político sem se ater a suas regras fundamentais. É como se dissessem em plena partida de futebol – agora o árbitro poderá ser trocado antes do fim do jogo e o uso de mãos e o chute em canelas passa a ser amplamente permitido! Gostam de dar um drible nas normas que lhes conferem legitimidade como atores políticos.

E aí vem o oportunismo. O STF – o árbitro do jogo, segundo a Constituição – deu um cartão vermelho à schnapsidee** do Marco Temporal e pode avançar no reconhecimento dos direitos da mulher a seu próprio corpo, a seu destino existencial, a colocar em debate a interrupção da gravidez. Estarão aí falando em direitos e não em deveres para a cidadania. Ninguém será obrigado a abortar, mas se optar por fazê-lo não será perseguida pelo Estado. Fundamentalistas presunçosos de sua verdade e aproveitadores políticos do fundamentalismo (mesmo sem serem honestamente fundamentalistas, pouco se lhes dando se a posse indígena deva ser imemorial ou não ou se o aborto venha a ser permitido ou não) correm para mexer nas regras do procedimento decisório do STF e na investidura de seus magistrados.

Mas há, ainda, os que só aderem ao impulso da acochambrada anticonstitucional para angariar apoios pessoais a suas pretensões de liderança.  Esses são os piores. Sabem que os objetivos dos fundamentalistas e dos não tanto fundamentalistas são deploráveis, que desfiguram a Constituição na sua essência de garantidora de direitos, sabem que o STF está apenas a cumprir, com independência, seu papel, de forma plural, na hermenêutica constitucional (nem todos os magistrados são liberais ou progressistas), mas querem ajudar a “melar” o jogo, porque pessoalmente lhes convém na posição que ocupam.

É legítimo, de lege ferenda, discutir mudanças pontuais na orgânica constitucional. A prática dos últimos trinta e cinco anos mostrou algumas disfuncionalidades no texto promulgado no nem tão longínquo outubro de 1988. Alguns gostariam de um Procurador-Geral da República mais arejado, de fora da carreira; outros, acham que manter-se um ministro por quarenta anos a ocupar um assento no STF é viciante e trabalha contra a inovação. Tudo muito válido de ser discutido, se não inspirado em propósitos instantâneos baratos que bagatelizem o consenso logrado na elaboração do texto fundamental. A sociedade pede e precisa de seriedade.

Conferir mandato a ministro do STF pode até ser uma boa ideia, mas a mudança não há de servir tão só para frustrar a prerrogativa constitucional de escolha do presidente incumbente ou para limitar o tempo de jurisdição de um magistrado malquerido. Posicionar-se contra o aborto é aceitável, mas basta a antiabortista não ir a uma clínica interromper sua gravidez; não precisa para isso querer cassar o magistrado que interprete a Constituição de molde a abrigar o direito de interrupção de outrem. Precisamos ter a noção da gravidade de nossas demandas. Do contrário, a carta constitucional vira maculatura e impera a lei do mais forte ou do mais esperto na sociedade.

O que se vê, neste momento político, é a extrema-direita a querer avançar sobre consensos democraticamente construídos, para, na falta de votos para governar, inviabilizar o governo eleito. Usa, com esse propósito, de fobias incutidas no coletivo com base numa escala de valores opressora e sem consenso. O fascismo sempre se alimentou do medo e do ódio. E não o faz de modo diferente nos nossos dias. Irresponsáveis, porém, são os atores políticos que, sem convicção fascista, sacrificam a democracia em seus altares do oportunismo e fazem tábula rasa de preceitos fundamentais, como a independência de nossos juízes, para agradar aos cães raivosos.

** Schnapsidee: palavra composta alemã; ato de fazer coisas malucas enquanto bêbado; devaneio alcoólico, ideia louca no estado de alcoolismo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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