Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Confete para os machões

Fico com a certeza de que realmente vivemos num país sem lei. Por aqui, as coisas não funcionam como na Suíça

Foto: Reprodução/Placar
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Só percebi que havia algo no ar quando o Boeing 737 pousou na pista do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Confusão geral. Gatinhas com buquês nas mãos, torcedores, repórteres de jornais, jornalistas de todas as emissoras de rádio e televisão. Empurrões e beliscões. Gente aflita, gente eufórica, gente emocionada, gente suada. Gente suada apesar do frio, da chuva fina e chata que, pouco a pouco, rega a cidade inteira. Por que tanta gente no aeroporto num dia tão banal?

São os quatro jogadores do Grêmio que estão chegando. Cuca, Fernando, Henrique e Eduardo. Eles ficaram presos em Berna, na Suiça, 29 dias. Foram acusados de violentar – estuprar mesmo – Sandra Pfaffli, uma menina suíça de 13 anos. Fiquei sabendo do caso lendo os jornais e vendo na televisão. É claro que não sei exatamente o que ocorreu naquele quarto do Hotel Metropol, em Berna, na tarde daquele 30 de julho. De qualquer maneira, acho estranho, chocante, o movimento no aeroporto Salgado Filho. Acho estranha a presença de mulheres empunhando bandeiras do Brasil.

A libertação de Cuca, Fernando, Henrique e Eduardo é o papo do momento aqui em Porto Alegre, é manchete dos jornais. Caio na realidade de que moro num país tropical. O que vi no momento em que os jogadores do Grêmio chegaram ao saguão do aeroporto é algo estranho.

Na verdade, os quatro estavam um pouco assustados, retraídos, acanhados mesmo. Não quiseram falar. Agiram exatamente ao contrário da grande multidão que estava ali eufórica, como se estivesse defendendo as cores do Brasil contra a Suíça numa Copa do Mundo. O povo estava ali para receber quatro heróis que trouxeram do país dos relógios finos, medalhas de ouro de um campeonato de machismo.

Ouvi coisas do tipo: Tinham mais é que faturar essa suíça mesmo. Provaram que são machos. Se fosse eu, faria o mesmo. Este era mais ou menos o clima. Haydé Hamester, mãe do zagueiro Eduardo, disse a um jornalista do Zero Hora: O Eduardo foi libertado depois que o Grêmio pagou a fiança. Para mim, os suíços queriam é dinheiro. Será que os suíços estão mesmo precisando dos nossos cruzados?

Por aí foi. Teve gente declarando à RBS, a Globo gaúcha, que o juiz lá em Berna é um louco. Todos estavam ali revoltados com o que aconteceu na capital suíça. Fico com a certeza de que realmente vivemos num país sem lei. Por aqui, as coisas não funcionam como na Suíça.

O homem que mandou matar o Leon Eliachar, cadê ele? Está soltinho da silva, numa boa. Os policiais que fuzilaram Pixote debaixo da cama naquele barraco em Diadema, onde estão? O homem que matou aquele trombadinha no centro de São Paulo, cadê ele?

Ora, essas pessoas chegam a achar que no país de Pixote, no país de Leon Eliachar, de um policial assassino, não vai ser um estuporzinho lá na Suíça que vai colocar alguém na cadeia. Cuca, Fernando, Henrique e Eduardo estão livres, sãos e salvos. As pessoas que foram ao aeroporto naquela tarde chuvosa de sábado não entenderam nada.

Enfim, está cada vez mais difícil conviver com os homens. De tarde, no hotel onde me hospedei, comentei o absurdo de um estupro de uma menina de 13 anos com uma pessoa que tomava um café e lia o Correio do Povo. Ela concordou comigo. Era uma mulher.

Esta crônica foi publicada no dia 1º de setembro de 1987, no Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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