Opinião

Cenografias Modernas

Todos que vêm a internet ou à TV fazerem suas apresentações têm, atrás de seus simpáticos rostos, uma estante com livros

Foto: Paul Faith/AFP/Getty Images
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Tento me lembrar de como eram antes da internet e da atual transmissão televisiva os cenários por trás dos vários jornalistas, especialistas convidados a opinar, comentaristas gerais ou acadêmicos e intelectuais famosos.

Muitas vezes neutros, brancos, pretos ou cinzas, até a chegada da TV a cores. Noutras, desenhos geométricos ou cortinas de volume. Se cenários de exteriores malfeitos e reveladores de montanhas, lagos, mares, árvores, um ou outro arbusto e cactos.

Puxo pela velha memória ou às fontes digitais de hoje, enciclopédias imagéticas. Eram variadas. Nada me encantava, nem pensava assim continuar meu desagrado.

Gostava das de Inezita Barroso e Rolando Boldrin, na TV Cultura. Uma casinha ou ambiente de caboclo. Um fogão à lenha fumegando. Mesmo que artificiais fossem o fogo, as flores, as prateleiras compradas no comércio urbano, mesmo assim eu gostava. Me levavam à vida dos campesinos, sertanejos, caipiras, tabaréus, que se adequavam à minha vida de vendedor de insumos agrícolas.

Jovem, suficientemente forte para que as botas e os bonés me fizessem, inábil, enredar os pés em campos de soja e cebola, ruas de cafezais e laranjais, tropeçasse, para logo disfarçar e me pôr em pé para poder seguir, resfolegando, os exemplares e orgulhosos condutores de suas lavouras.

No fim da tarde, fogo aceso, carne na brasa, as músicas me remetiam aos cenários de Inezita e Boldrin, limpas, despretensiosas, por seus próprios valores, como nos filmes de Mazzaropi, onde as espingardas podiam até defender a justiça com seus canos tortos.

A quem aquelas armas queriam matar? Eu é que não. Já pronto, seguindo ao pequeno hotel da cidade para dormir. Um tanto cambaleante, confesso. Sem TV, ar-condicionado e frigobar no quarto, apenas um quadro, tortamente pendurado, retratando a igreja matriz, na suposição de que eu rezaria antes de cair no leito, esquecido de verdades e mentiras que contara aos presentes. Sabia estar protegido até o frugal café-da-manhã.

Nada pior, pois, do que a novidade de hoje em dia, escandalosamente majoritária. Ela faz minha frustação. Não há exceção. Apontem-me uma.

Todos que vêm a internet ou à TV fazerem suas apresentações, sejam depoimentos técnico-científicos, políticos, econômicos, religiosos, identitários, dentários (correção de dentes feios como os dos britânicos), humorísticos, agropecuários, todos, tendo atrás de seus simpáticos rostos uma estante com livros.

Por quê? O que querem demonstrar? Parecerem mais lidos, inteligentes, informados do que os mortais que os assistem? Será que leram mesmo tudo aquilo atrás de seus rostos, muitos deles meio abestalhados? Ou será que são corruptelas daquelas mesas de centro de salas das casas chiques, ondem dormitam livros de pintores famosos, nunca virada uma só página entendida a intenção do autor?

Espanta-me a organização dos livros nas estantes de fundo. Outra coisa: tudo novinho, como se eles tivessem sido comprados ontem. Mais, botem reparo: sempre os mesmos, num desenho geométrico, como o de um operário despencando de uma construção atrapalhando sábado e tráfego (apud Chico Buarque).

É aí que vem meu busílis. Há tempos que me proponho a fazer locuções, (lives, podcasts) sobre agricultura, pecuária e seus negócios, pela minha pequena empresa de consultoria, a BIOCAMPO®.

Prometo, prometo, e não começo. Sabem por quê? Falta o “pano-de-fundo” adequado. Já pensei em contratar um cenógrafo. Cobram muito. Organizar minha biblioteca? Puta trabalho. São mais de dois mil volumes em estado miserável, parte manuseada nestes 78 anos de vida, parte pela minha desídia e a avidez pré-morte.

Não terminaria o labor antes que a finitude fosse final. Alguém que, diante de minhas posses, topasse trabalho escravo? Sou veemente contra. A meus filhos não deixaria tarefa tão ingrata. Também por saber que cagariam para tal tesouro, embora saibam eles, mais não tenho para deixar como herança. CDs e vinis, aos poucos, eles vão levando para os rincões onde moram. Com as plataformas digitais, logo também serão descartáveis.

Creio haver mais cinco locais assim atopetados. Coloco como pano de fundo nas minhas lives ou podcasts? A GloboNews me contratará? Lembrem-se, Musk, Gates, Bezos, a preferência será sempre de CartaCapital e GGN. Se a grana for boa, e a “rachadinha” for com eles, topo.

Ah, o agronegócio está “bão” e, apesar de Sérgio D’Ávila, editor da Folha de S.Paulo, com Lula, pelo que fez em 100 dias, irá melhorar.

Hoje, não sugiro música, mas a primeira edição do livro Anti-Duhring (Edições Cultura Brasileira, 1878), do filósofo socialista alemão Friederich Engels (1820-1895).

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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