Alva Helena de Almeida

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Enfa. Mestre em Saúde Pública, Doutora em Ciências. Ativista pelo SUS público, de qualidade e SEM RACISMO. Integrante da Soweto Organização Negra.

Opinião

Cenário da enfermagem em 2022: luta por dignidade salarial e contra racismo naturalizado

Pesquisa divulgada recentemente expõe realidade inaceitável de profissionais negros e negras dentro na enfermagem

Foto: Paula Froes/GOVBA
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Há exatamente um ano, relatávamos as condições de intensa precarização e intensificação do ritmo de trabalho da equipe de enfermagem no país, acentuadas no contexto da Pandemia da COVID 19. Naquele momento os profissionais vivenciaram situações jamais descritas, enquanto lutavam pela aprovação do Piso Salarial e a Jornada de trabalho.

No dia 04 de maio de 2022, os profissionais alcançaram a aprovação do Projeto de lei que regulamenta o Piso e a Jornada de 30 horas, mediante expressiva votação na Câmara Federal, intensa mobilização nas capitais brasileiras, no auditório e no site da casa legislativa. A categoria permanece organizada, aguardando o deferimento presidencial.

Paralelamente a esse evento histórico, integrantes da Articulação Nacional de Enfermagem Negra (ANEN), analisaram os dados de uma Sondagem sobre Racismo e Discriminação, realizada em parceria com o Conselho Regional de Enfermagem do Estado de São Paulo (CORENSP), em novembro de 2021. Nosso interesse foi produzir dados mensuráveis que expressassem as desigualdades, além de identificar práticas racistas que impeçam o acesso e a mobilidade social e institucional de profissionais negras e negros no mercado de trabalho. O convite à participação foi feita através do meio eletrônico e assinatura do termo de consentimento.

Participaram da sondagem 1090 profissionais, número muito diferente de outra realizada em março de 2021, ‘Ser Mulher’ na Enfermagem, cujo universo foi de 11.985 respondentes. Essa disparidade nos indica a dificuldade em tratar essa temática nas instituições. Reforçam essa impressão as respostas de 96,3% que informaram existe Racismo no Brasil e 95,6% que Não se consideram Racista.

Quanto aos dados sociodemográficos, a amostra reiterou o perfil feminino, 85,6%, maioria cisgêneros e heterossexuais. Uma parcela muito pequena revelou ser de transgêneros, homo e bissexuais. Trata-se um grupo de maioria jovem, 86,2% têm até 53 anos.

Quanto à autodeclaração de raça/cor, 36,6% são brancos, 61,2% são negros, a somatória de pardos e pretos, 1,7% amarelos e 0,3% indígenas. A relação estabelecida entre a quantidade de profissionais brancos e negros, se mostrou invertida à registrada no censo de 2010 no Estado de São Paulo, o que nos leva a supor ter havido maior adesão dos profissionais negros nessa amostra. A maioria, 66,8% têm apenas um vínculo e 17,3% estava sem vínculo. Entre os desempregados o número de profissionais negros foi aproximadamente o dobro dos brancos, confirmando uma das nossas hipóteses de desigualdades no mercado de trabalho.

Enfermeira no HU do Rio de Janeiro. Foto: Raphael Pizzino/ Coordcom UFRJ

Com relação à renda, no município de São Paulo, as mulheres brancas e amarelas detêm os maiores ganhos do mercado, na Classe A, acima de 20 salários. Mulheres brancas e homens brancos são maioria na Classe B, até 20 salários. Os profissionais negros, homens e mulheres são maioria nas classes C, D e E. Os profissionais indígenas concentram-se nas classes C e E, confirmando o acesso de negros e indígenas a um padrão de renda menor para sua subsistência. 70,8% responderam que a Renda Não é suficiente para as despesas e 75,6% que é limitante para continuidade dos estudos.

Contudo constatou se tratar de um conjunto de profissionais bastante qualificados para o mercado de trabalho, cerca de 25% com uma Especialização, 27,5% com duas e 31,8% Não ter nenhuma. Nesse grupo, 72,9% são negros. Os discursos registrados reforçam esse cenário, expressão do racismo estrutural:

“É a forma como a estrutura da sociedade está organizada para segregar ou dificultar o acesso de uma outra raça – no caso a negra, a todos os tipos de acessos básicos. Educação, saúde, emprego etc”.

“Pessoas pretas terem menos oportunidades de se aprimorarem profissionalmente por conta do racismo estrutural”.

No que se referiu ao conhecimento sobre atos de racismo, 84,8% confirmaram ter conhecimento de atos praticados no cotidiano, e 73,8% informaram ter conhecimento de racismo praticado na instituição (outro profissional, familiares, pacientes). Quanto à Existência de Profissionais negros no local de trabalho, 70,2% responderam Ser a Minoria; e com relação à Profissionais negros em Posição de Chefia, 41,9% responderam Não conheço, 17,8% SIM, apenas um; por fim, 84,5% responderam NÃO conhecer Práticas Antirracistas no local de trabalho.

Os dados expressam conexão entre a composição desigual do quadro de pessoal, a pouca visibilidade dos profissionais na função de chefia/coordenação e a incipiência de práticas de enfrentamento. Os discursos potencializam os dados objetivos:

“Falta Gerente, RT [Responsável Técnica], e Supervisor de Enfermagem Negros/Negras”.

“Considerar que pessoas negras não são capazes de liderar e assumir cargos”.

“Quando na instituição com mais de 60 enfermeiras, somos 3 negras, apenas”.

“Empresas que não contratam pessoas acima do peso, idade após os 40 anos, negros etc”.

Foto: Carol Garcia/GOVBA

Quando questionados quem foi o Sujeito que sofreu racismo no ambiente de trabalho, 72,9% responderam Colega de trabalho, 49,6% o próprio profissional, 34,7% usuário; em relação ao Sujeito que cometeu Racismo, 55,9% responderam Paciente/usuário, 46,6% Colega de equipe, 43,8% Chefia, 36,2% Profissional de saúde; 23,9% outros profissionais e 16,5% Familiar. Os participantes confirmam:

[Racismo] “É aquele que sofremos no ambiente de trabalho, por superiores, colegas e clientes”.

“Sinto a rejeição dos meus superiores hierárquicos todos os dias, a desqualificação do meu trabalho, sempre existe alguma coisa para tirar o meu sossego”.

Os dados são incontestáveis! Inaceitáveis! Estamos falando de vidas, trajetórias profissionais e um dos direitos fundamentais da vida humana: o direito ao trabalho!

Para além de um salário digno e de uma jornada de trabalho justa, é urgente estabelecer políticas de enfrentamento ao racismo, discriminação e assédio moral no mercado de trabalho da Enfermagem.

Os processos de contratação e de desenvolvimento da carreira aqui referido à enfermagem paulista, pareceram impregnados de práticas discriminatórias, racistas, homofóbicas, Gordo fóbicas, etarismo, injustiças, e ainda coniventes com o ‘pacto narcísico’, desenvolvidas segundo o interesse do grupo de dirigentes brancos, e seus intermediários também brancos, assegurando a ocupação e permanência nos cargos mais qualificados da instituição, para outros brancos, ‘modelo de ser humano’.

O cenário exige comprometimentos, rupturas com essas práticas naturalizadas e com os privilégios mantidos por séculos, além de providências cabíveis e legais: das Entidades de Classe, das Empresas de Saúde, do Sistema de Saúde e do Estado Brasileiro, para o alcance do respeito, do tratamento humano e equânime a que todos temos direito, enfim, da construção de uma sociedade democrática.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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