Justiça

Caso Moro no TCU: quem com ferro fere, com ferro será ferido?

O Sérgio Moro de agora não resistiria um sopro sequer aos arroubos autoritários da jurisdição daquele outro e prometeico Moro, o ‘paladino da Justiça’.

SÉRGIO MORO. PHOTO: SÉRGIO LIMA/AFP
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Como ensina sem sobressaltos os hábitos da história, às vezes é preciso um leve afastamento no tempo para que se enxergue direito. Aos olhos do acontecimento, quanto mais se desliza nas agruras da passagem dos anos, melhor se ajusta a visão.

Como óculos inversos, o que se perde em detalhamentos se ganha em potência. Ao perder as miudezas de cada um dos ínfimos acontecimentos que se entrelaçam, ganha-se em eficácia de diagnóstico: no afastamento, são os hiatos, as continuidades e as descontinuidades que começam a apontar, assim como as rãs que saltam no mato, emergindo de seus refúgios subterrâneos durante a chuva.

O terreno está bem pavimentado e já é bem conhecido: Moro responde processo no TCU por conta da sua contratação pelo grupo Alvarez & Marsal, conhecido no Brasil pela atuação na reestruturação e recuperação financeira judicial de empresas atingidas pela operação Lava Jato.

O objetivo do processo no TCU foi investigar possíveis conflitos de interesses e desvios de finalidade na contratação de Moro, que, enquanto juiz, atuou diretamente no cenário financeiro catastrófico dessas empresas. O desvirtuamento ético é óbvio, mas as implicações jurídicas merecem ser investigadas.

Dentre as empresas, a Diamond Offshore Drilling, fornecedora da Petrobrás, da qual o grupo Alvarez & Marsal recebeu, até abril de 2021, quando Moro constava como “sócio-diretor” da A&M, cerca de 16,5 milhões de dólares. Além dela, a A&M atuou na recuperação judicial do Grupo Odebrecht, das construtoras OAS e Queiroz Galvão, do banco BVA, do Grupo Agroserra e do estaleiro Enseada — um consórcio entre Odebrecht, Kawasaki, OAS e UTC.

Aqui devemos fazer um deslizamento no tempo.

Voltemos a 2018: Moro, ex-juiz, então futuro ministro da Justiça, só se tornou ministro por conta da sua conduta enquanto juiz, retirando ilegitimamente Lula das disputas das eleições presidenciais de 2018, principal oponente nas urnas de Bolsonaro. Moro, filho do casamento entre o lavajatismo e o bolsonarismo, beneficiou-se do cargo de ministro pela atuação daquele outro Moro, o político togado.

Deslizamos agora para 2020: Moro, ex-ministro da Justiça, aquele que falou que jamais assumiria cargo político, deixou o cargo de ministro para ir para A&M. De sócio-diretor foi rebaixado, mediante provocação do processo no TCU, a mero consultor, Moro se beneficiou mais uma vez da atuação daquele outro Moro, o político togado, mesmo que pelas vias oblíquas de um outro CNPJ — ficção jurídica para defender o indefensável, assim como aquela outra ficção, a colocação de cláusula contratual para obliterar os desvios éticos, impedindo Moro, em tese, de atuar perante as empresas envolvidas com a Lava Jato.

Passemos a 2021: agora Moro, pré-candidato à Presidência da República pelo partido Podemos, deixa a consultoria da A&M. Logo Moro, aquele que disse que nunca ocuparia cargo político, mas foi ministro. Justo Moro, que após ter se tornado ministro, jurou nunca disputar as urnas. Ele mesmo, o falacioso Moro, que agora se apresenta como pré-candidato à República e que, nas duas faces de Jano, filho de Hemera, não hesita ao manipular mentiras.

Continuemos em nossa esteira do tempo…

Moro, agora em 2022, reclama da retirada do sigilo pelo relator do TCU, Bruno Dantas, no processo em que ele é investigado. Quer voltar às sombras. Foi aquele outro Moro quem disse, enquanto juiz na operação Lava Jato: “A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.

Aquele outro Moro usou e abusou não somente do levantamento de sigilo, como também explorou a sincronicidade de atos judiciais, não hesitando ao associar coletivas de imprensa com fases da operação ou atuando politicamente no processo para atender a fins e interesses extraprocessuais.

Os exemplos pululam na Lava Jato: o lançamento da liberação, às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018, do acesso à delação do ex-ministro Antônio Palocci, com acusações diretas ao Lula, marcando temporalidades que se conjugaram no interesse de afetar os mecanismos de soberania popular; o grampeamento ilegal e a gravação extemporânea da ex-presidenta da República, Dilma Rousseff, vazando seletivamente as gravações para a imprensa, que contribuíram para o processo de impeachment, em 2016, rendendo escassos reflexos na órbita jurídico-administrativa, embora com consequências políticas desastrosas.

Lula, que teve a vida devassada pela Lava Jato e pelo outro Moro, era apenas um “ator privado”, assim como o Moro de agora. Mas não era aquele outro Moro, que, como o Príncipe de Maquiavel, enquanto juiz, defendeu que os fins justificam os meios?

Retornemos a fevereiro de 2022 e é a este Moro que daremos passagem

Moro, agora pré-candidato à presidência da República, não resistiria um sopro à jurisdição e aos arroubos autoritários daquele outro e prometeico Moro, “paladino da Justiça”. E as suas poeiras imorais não resistiriam um pó sequer à faxina moral daquele outro Moro, o “juiz da Lava Jato”.

E se as teias da Lava Jato se teceram pela utilização de meios excepcionais que justificariam os fins da caçada aos inimigos, na figura moralizada do “corrupto”, mesmo ao custo da destruição do Estado de Direito, é o Moro de agora quem brada pelo retorno ao Estado de Direito, este que ele durante tanto tempo desprezou.

Moro reclama do pedido de bloqueio de bens no processo do TCU, pelo subprocurador-geral do Ministério Público, em 4 de fevereiro de 2022. Seria cômico se não fosse trágico: Moro que, enquanto juiz, junto com os procuradores da república do MPF, utilizaram do cargo para perseguir inimigos políticos, agora afirma que “o cargo de procurador do TCU não pode ser utilizado para perseguições pessoais contra qualquer indivíduo”.

Moro, quem se utilizou vastamente, enquanto juiz, de indisponibilidade de bens, inclusive confiscando ilegalmente imóveis e veículos de Lula, agora reclama que, quanto ao processo do TCU, “causa perplexidade ao pedir agora a indisponibilidade de meus bens sob a suposição de que teria havido alguma irregularidade tributária”.

O tempo, visto desse ângulo, de longe, pode até parecer sereno e impassível, mas foi certeiro para Moro: quem com ferro fere, com ferro foi ferido… O processo no TCU está mesmo sabendo cobrar velhas dívidas.

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