Diversidade

Carta das mulheres indígenas do Baixo Tapajós

“Não vamos nos intimidar com as crescentes ameaças vindas de representantes do poder público e também de entidades privadas”

Mulher do Baixo Tapajós (foto: Simone Gioveni)
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Bolsonaro começou seu governo incitando o velho bandeirantismo de caça aos povos indígenas, destruindo a Funai, entregando a função das demarcações e licenciamento para as próprias raposas do agronegócio e mineradoras cuidarem, e transferindo a defesa dos direitos para evangélicos fundamentalistas interessados no mercado das almas indígenas. Rapidamente, em todo o país, as comunidades indígenas passaram a debater a conjuntura e se organizar para resistir.

A Apib convocou atos de protesto em uma grande mobilização nacional para o dia 31 de janeiro. No baixo Tapajós, mulheres indígenas, guerreiras amazônicas, reuniram-se para se fortalecerem para a luta e redigiram esta linda carta pública, que reproduzimos abaixo: “Não vamos nos intimidar com as crescentes ameaças vindas de representantes do poder público e também de entidades privadas”.

Em Santarém, onde muitas dessas lideranças são estudantes na Universidade Federal do Oeste do Pará, muitas chegaram e receberam a notícia de que o governo federal cortou bolsas para estudantes indígenas e quilombolas, e há dois dias organizam uma ocupação da universidade, com aulas publicas e debates abertos com a comunidade. Como declaram as mulheres indígenas na carta abaixo: resistiremos!

CARTA DAS MULHERES INDÍGENAS DO BAIXO TAPAJÓS

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Aldeia Novo Gurupá, Rio Arapiuns, Santarém-Pará, 12 de janeiro de 2019

 

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Nós, mulheres indígenas do Baixo Tapajós dos povos Arapium, Apiaká, Arara Vermelha, Borari, Jaraqui, Kumaruara, Maytapu, Munduruku, Munduruku Cara­ Preta, Tapajó, Tapuia, Tupayú e Tupinambá[1], realizamos nosso primeiro Encontrão, no período de 09 a 13 de janeiro de 2019, na aldeia Novo Gurupá, no rio Arapiuns, no município de Santarém-Pará. Reunimos cerca de duas centenas de mulheres para discutir estratégias de resistência, defesa dos nossos territórios e efetivação dos direitos das mulheres indígenas, para trocar conhecimentos e fortalecer nossa cultura e espiritualidade. Ao longo desses dias, fizemos rituais e produzimos artesanatos, remédios caseiros, produtos de limpeza, fizemos pinturas corporais com jenipapo e urucum e cuidamos da nossa beleza. Fazer juntas, para nós, é um modo de existir e resistir.

De exercer nossos princípios de coletividade e de repasse de conhecimentos entre gerações. É desse modo que milenarmente defendemos nossos territórios, nossos costumes e tradições. Que mantemos nossa relação com a floresta e os rios. Nós dependemos da natureza para continuar existindo física e espiritualmente. Os seres encantados que nos protegem e que dão continuidade à vida dependem da floresta e dos rios. Se matam os rios e a floresta eles morrem e nossos povos morrem junto. Por isso, estamos preocupadas com o acelerado desmonte da política indigenista coordenado pelo recém empossado Presidente da República Jair Messias Bolsonaro. Não queremos desmatamento! Não queremos exploração dos nossos recursos naturais! Não queremos plantio de soja e pecuária extensiva nas nossas terras! Não queremos construção de hidrelétricas e portos nos nossos Rios!

Atualmente, somos mais de 07 mil indígenas. Vivemos em 64 aldeias que compõe 18 territórios indígenas localizados nos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro no Oeste do estado do Pará. Nossos avós, bisavós e tataravós contam as histórias dos antigos que viviam aqui na região do Baixo Tapajós. Sabemos que nossos ancestrais até hoje moram nos nossos territórios. Os locais onde eles vivem para nós são sagrados e temos muito respeito por esses lugares. Dependemos deles para dar continuidade a nossa existência espiritual e cultural. Nossos mais velhos nos ensinaram a respeitar e cuidar da mãe terra, da mãe água. Cada lugar têm uma mãe e é ela que o guarda e cuida. Repassamos esses ensinamentos para nossos filhos e filhas. É desse modo que nos mantemos vivos e resistentes as todas violências que nos atingem.

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Não vamos nos intimidar com as crescentes ameaças vindas de representantes do poder público e também de entidades privadas. Em todas as instâncias há iniciativas que pretendem deslegitimar nossa existência e negar o direito originário aos nossos territórios. Vamos citar alguns exemplos emblemáticos nos níveis municipal, estadual e federal. A Câmara Municipal de Santarém, em dezembro de 2018, instituiu uma comissão especial para estudar os territórios e povos étnicos partindo do pressuposto que há “falsos índios” na região. Isso é um desrespeito à nossa ancestralidade, memória e violação do direito constitucional de auto reconhecimento étnico. No mesmo mês, o prefeito de Santarém sancionou o Plano Diretor Municipal em desacordo com a definição tomada na Conferência Municipal com participação de cerca de 700 cidadãos santarenos. Entre as mudanças realizadas no texto final aprovado na Conferência está a inclusão da área do Lago do Maicá em zona portuária.

Nessa região vivem indígenas, quilombolas e ribeirinhos. A votação sobre esse ponto foi a mais debatida e acirrada e por grande diferença a população escolheu não permitir a construção de portos no Lago do Maicá. O referido Lago é um patrimônio ambiental e socioeconômico para a região. Centenas de famílias dependem do Lago Maicá para manterem seus modos de vida e sustento financeiro, principalmente, através da pesca. Além disso, é na região do Maicá que está localizado o Território Indígena Munduruku-Apiaká do Planalto Santareno que teve o Grupo de Trabalho de Identificação da Terra Indígena paralisado pelo Governo Bolsonaro. Essa região do Planalto Santareno é cobiçada pelo agronegócio para monocultura de soja. A entidade representativa dos produtores rurais em Santarém, SIRSAN (Sindicato Rural de Santarém), contrata profissionais para perseguir lideranças do movimento indígena e quilombola.

No que se refere às responsabilidades do governo estadual, destacamos a falta de investimento completo na Educação Escolar Indígena que acarreta em precariedade nas condições de trabalho para os professores, má qualidade e pouca quantidade de oferta na alimentação escolar e não efetivação de uma educação diferenciada. O Governo do Estado do Pará não executa políticas públicas voltadas para os povos indígenas do Baixo Tapajós. Em muitos casos emite permissão para exploração de recursos naturais nos nossos territórios sem nos consultar.

Como já explicitamos, o Governo Bolsonaro, com apenas 13 dias de mandato, coordena um acelerado desmonte da política indigenista. No primeiro dia do mandato, 01-01-2019, foi publicada a Medida Provisória n° 870 que entre outras coisas transfere para o Ministério do Agronegócio, sob gestão da Tereza Cristina, mais conhecida com a Musa do Veneno, a atribuição de identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras indígenas e a responsabilidade de fazer licenciamento ambiental de empreendimentos que impactam as terras indígenas. Esse ato coloca em alto risco nossas terras. Por isso, pedimos apoio de toda comunidade internacional para boicotar produtos do agronegócio brasileiro!

A FUNAI além de esvaziada – por perder essas atribuições fundamentais para garantia dos nossos direitos – foi transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado por Damares Alves. Ela é pastora evangélica, defensora da Escola sem Partido e do combate a ideologia de gênero. Um perfil completamente oposto ao que imaginamos de uma profissional para trabalhar com pautas de direitos humanos, minorias étnicas, raciais e de gênero. O discurso de Bolsonaro e sua equipe sobre os povos indígenas é retrogrado e desrespeitoso conosco, com nossa história, ancestralidade e atuação política e cidadã junto ao Estado brasileiro.

O Presidente nos comparou a animais no zoológico presos em jaula ao se referir a nossa vida dentro dos nossos territórios tradicionais. Ele faz afirmações absurdas sobre nosso modo de vida e sobre nossos desejos enquanto cidadãs brasileiras. Sim, somos brasileiras! Somos indígenas! Sabemos o que queremos e exigimos o direito de sermos consultadas pelo Estado para elaboração e implementação de políticas públicas! Queremos a promoção da saúde da mulher indígena! Queremos educação pública, específica e diferenciada de qualidade sendo ofertada dentro das nossas aldeias! Queremos ter autonomia para fazer a gestão ambiental e territorial das nossas terras! Queremos respeito a nossa cultura, tradição e espiritualidade! Queremos nossos territórios demarcados! Nossa terra não é mercadoria! Resistiremos! SURARA! SAWÊ!

[1] Também participaram do nosso encontro mulheres dos povos Karajá e Tukano.

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