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“Integração” dos povos indígenas: a política do retrocesso

Pensada para a “resolução” da questão indígena, a política da integração só pode ser sustentada em violação aos direitos dos povos indígenas

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
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O presidente da República definiu que a política contingente do seu governo sobre a questão indígena será marcada pelo reavivamento da política da integração outrora adotada pelo Estado brasileiro, durante o período pré-Constituição de 1988. Essa decisão encontra-se marcada em diversos discursos do mandatário. O mais emblemático, proferido já no exercício do mandato, foi publicado em uma rede social, em que o presidente asseverou que sua gestão será marcada pelo objetivo de “(…) integrar estes cidadãos (…)”.

Estamos diante da política adotada que deve ser compreendida como sinônimo de assimilação cultural ou aculturação, isto é um conjunto de decisões e diretrizes governamentais especificamente voltado à desconstituição da identidade dos povos indígenas brasileiros como povos distintos e com direitos específicos, de modo divergente da denotação a ela atribuída por indígenas e indigenistas no passado, em interpretação conferida aos dispositivos do Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973).

A política da integração tem como premissa fundamental um preconceito, que nada mais é que um julgamento ou um conjunto de julgamentos acolhido de maneira acrítica e passiva, com apoio em tradições, costumes ou deferência a uma autoridade. Quando o julgamento é feito pela maioria em relação à minoria, constitui-se em um “preconceito de grupo”. Norberto Bobbio é preciso ao elucidar que não existe ser humano despido de preconceitos, mas o conceito preestabelecido acrítica e passivamente torna-se nocivo a partir do momento em que resulta em discriminação, assim compreendida como uma diferenciação injusta ou ilegítima, porquanto contrária à “regra de justiça” de que os iguais devem ser tratados de modo igual e os diferentes de modo diferente, conhecida entre nós como princípio da igualdade ou da isonomia.

A discriminação se desenvolve em três fases básicas:

  • primeiro, há um juízo de fato, em que se constata a existência de traços de diferença entre os grupos;
  • na sequência, realiza-se um juízo de valor, quando um dos grupos é considerado melhor, superior em relação ao outro;
  • e, na derradeira fase, o grupo julgado superior sustenta que deve comandar, enquanto o inferior deve obedecer.
  • Aqueles que querem ser tratados de forma “justa” devem tornar-se iguais, uniformes, despidos de suas características específicas e moldados na forma genérica de “brasileiro”, assim como definida pelos donos do poder, que construíram a ideia de um Brasil como “nação”. Sartre, em referência aos judeus na Europa, tratava isso como a forma democrática, liberal, do racismo.

Essa relação discriminatória ocorreu entre diversos grupos, em variados momentos históricos. Na história do Brasil, a mais nítida e que, de certa maneira, ainda não foi objeto de abolição total, foi entre os negros e aos brancos.

Como consequência, o preconceito atravessa um caminho razoavelmente linear, passando pela discriminação jurídica, consistente no desprezo da regra da justiça pelo sistema jurídico, que é estabelecido pelo grupo autojulgado superior e que detém o monopólio do poder político, depois pela marginalização social do grupo inferiorizado e, por fim, pela perseguição política.

Quando aplicada para a “resolução” da questão indígena, a política da integração só pode ser sustentada em violação ao direito à diferença titularizado pelos povos indígenas; em desprezo pela regra da justiça, pois, se o objetivo é integrar os indígenas à sociedade envolvente (não-indígena), isso só pode partir da ideia de superioridade dessa sociedade, em contraposição à inferioridade das sociedades indígenas.

Dessa maneira, respeita-se a cidadania do indígena, ou sua própria humanidade, apenas se ele se despir de sua condição étnica diferenciada e específica.

No caso particular dos povos indígenas, o assimilacionismo ainda possui uma dimensão adicional, fundamental para o seu entendimento, que é o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas. A influência do poder econômico nessa questão, dissimulada somente como uma disputa moral conservadora, traz o que entendemos como o cerne da questão dos direitos indígenas no Brasil, na atualidade: o direito à terra. Nada pode ser mais claro em relação a isso do que o positivado com a Medida Provisória n.º 870, publicada no primeiro dia do novo governo, que estabelece o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), sob a direção de uma ministra que integrava a bancada ruralista no Congresso Nacional, como o órgão competente para a condução dos processos administrativos de demarcação das terras indígenas. Nesse sentido, ao “integrar” o indígena, busca-se fragilizar seu direito originário à posse permanente da terra tradicionalmente ocupada.

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Diversas foram as ocasiões em que se declarou o interesse de explorar economicamente as terras indígenas, como se os próprios indígenas já não o fizessem à sua maneira, quando interessados. E isso não foi seriamente apresentado como um investimento nos inúmeros projetos desenvolvidos pelos próprios indígenas, mas como algo a ser feito a despeito deles.

A propósito, com o objetivo de descreditar a política pública de demarcação, é frequente a utilização do argumento de que aproximadamente doze por cento do território nacional é composto por terras indígenas demarcadas. Contudo, a veracidade do fato não resulta na total honestidade da interpretação que dele se faz. Em primeiro lugar, por que parcela substancial das terras demarcadas situa-se em áreas juridicamente insuscetíveis de exploração segundo os métodos tradicionais da sociedade não-indígena, porquanto integrantes do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), instituído pela Lei n.º 9.985/00, caso em que as comunidades indígenas funcionam como importantes “soldados da floresta”. Em segundo, por que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas destinam-se à sua posse permanente, mas a propriedade das áreas continua sendo da União – um bem público, portanto -, nos termos dos artigos 20, inciso XI, e 231, § 2º, da Constituição da República, em inequívoca adesão ao indigenato, tradicional instituto jurídico luso-brasileiro que deita suas raízes na Carta Régia de 30 de julho de 1611.

Sabemos como o “ser indígena” está profundamente ligado à terra e às diversas territorialidades. E ser integrado, ou assimilado, significa deixar de “ser índio”, de acordo com o que a sociedade brasileira entende como “ser índio”. As populações tradicionais, ao serem “desindianizadas” – para usarmos o termo de Eduardo Viveiros de Castro -, são transformadas em “mestiços”, “caboclos” ou “bugres”, e, por conseguinte, passam a ser “invisibilizadas”. A terra indígena tem proteção constitucional desde a Constituição de 1934. A terra de “mestiços”, “caboclos” ou “bugres”, todavia, está livre para ser tomada.

No sul do Mato Grosso do Sul, por exemplo, os Kaiowá e Guarani, assim como os Terena e diversos outros povos em outras regiões, sofreram, no decorrer dos séculos XIX e XX, um implacável processo de desterritorialização forçada. Combinada com uma segregação social e física, que os relegou às margens da sociedade e que redundou no abandono de muitos nas periferias de áreas urbanas e à beira de rodovias, essa desterritorialização confinou os demais em reservas indígenas superlotadas, que são recorrentemente denominadas por lideranças indígenas locais como “chiqueiros”, onde eles se encontram exilados de suas terras tradicionais. E são os próprios indígenas que arcam com o ônus do desalojamento a que foram submetidos. Ou seja, ainda que tenham sido as vítimas de um processo amplo de expropriação, tal fato é utilizado para desqualificá-los como “índios” e fundamentar os ataques aos seus direitos, como é o caso da aplicação da teoria do marco temporal nos processos judiciais que discutem a demarcação de terras indígenas, a qual estabelece a ironia de que, para a terra ser considerada como indígena, deve ser comprovada a presença de indígenas na área na data da promulgação da Constituição de 1988, ocorrida no dia 05 de outubro daquele ano.

Nesse contexto, o discurso predominante é de que os índios teriam deixado de ser índios, pois circulam pelas cidades e “usam calça jeans e celular”. Hipocritamente, no entanto, eles continuam sendo tratados como “o outro” quando se cuida de lhes atribuir traços negativos. Em outras palavras, o discurso é válido quando se destina a defender uma suposta perda da indianeidade, mas é inválido quando dedicado à interpretação coletiva dos indígenas, caso em que são considerados como “bêbados, vagabundos e violentos”, justamente por serem índios.

A inversão dessa proposição seria os indígenas questionarem se os não-indígenas ainda utilizam vestes do século XV ou se se locomovem por meio de caravelas, sempre que confrontados com discursos dessa espécie, com o escopo de evidenciar o dinamismo presente em qualquer sociedade humana. É dizer: se a sociedade não-indígena sofre alterações no decurso do tempo, por qual razão as comunidades indígenas deveriam permanecer estáticas? Por que isso lhes subtrairia de sua indianeidade?

Plenário do Senado Federal durante sessão especial destinada a homenagear os povos indígenas pelo em comemoração ao Dia do Índio. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Integracionismo não obedece à lógica da Constituição

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No plano jurídico-positivo, a Constituição da República de 1988 rompeu com a lógica imposta pelo integracionismo ao adotar a lógica da política da interação. Com efeito, ao enunciar que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (art. 231); que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são as indispensáveis “a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art. 231, § 1º); e que é “assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (art. 210, § 2º), a nova Lei Fundamental da República deixa clara a opção de respeito e proteção do Estado às diferenças dos povos indígenas à vista das características da sociedade envolvente. Abandonam-se disposições como “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”, presentes em todas as constituições desde a Constituição de 1934, a exceção da Carta de 1937, que só continha uma única prescrição sobre a posse das terras indígenas.

Assim, as novas prescrições constitucionais também operaram a não recepção (“revogação”) de normas infraconstitucionais (leis, decretos, instruções etc.) integracionistas, sobretudo inúmeros dispositivos do Estatuto do Índio, extirpando do sistema jurídico a doutrina que reinou no Brasil até 1988, essencialmente baseada na superada convicção positivista de Auguste Comte que guiou os fundadores da República, em 1889.

Além disso, o Brasil é signatário da Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os Povos Indígenas e Tribais, fruto da luta e mobilização internacional dos diversos povos indígenas e tribais do mundo, promulgada pelo Decreto n.º 5.051, de 19 de abril de 2004, onde assumiu o compromisso internacional de repúdio ao integracionismo e de promoção do direito de autodeterminação dos povos.

Não somente o seu preâmbulo, como também o art. 8º da Convenção n.º 169 da OIT, é explícito quanto ao reconhecimento do direito dos povos indígenas em não sofrer assimilação forçada e ao dever dos estados partes de prevenir e reparar toda forma de assimilação compulsória. Todavia, na contramão dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro, e na contramão da própria história, o governo atual resolve reassumir a postura integracionista de maneira clara e despudorada, apoiado por um discurso moral conservador que mascara os verdadeiros interesses econômicos e de exercício direto do poder.

Portanto, a defesa e promoção do integracionismo por qualquer governo eleito, como política contingente, é manifestamente inconstitucional e inconvencional, eis que antagônica à política permanente definida pelo poder constituinte originário, independentemente da legitimidade jurídico-democrática do mandato, além de constituir ilícito internacional passível de responsabilização do Estado brasileiro.

Parafraseando uma liderança kaiowá do sul do Mato Grosso do Sul, os karaí (termo guarani genérico para o não-indígena – “branco” ou “catequizado”) inventam suas leis e eles mesmos não as respeitam. Assim, quiçá melhor do que a população não-indígena brasileira, os indígenas entendem que essa é uma luta política, não apenas jurídico-normativa.

A defesa da postura integracionista geralmente é apoiada por discursos populistas de união da nação e de respeito aos povos indígenas, o que também explica o motivo pelo qual costuma estar inserida em um contexto de nacionalismo exacerbado. Todavia, fato é que dissimula motivações espúrias de exploração de riquezas em nome do capital nacional e estrangeiro, às custas de cruéis ações etnocidas, de genocídios velados e da destruição do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A reação das forças conservadoras, aqui entendidas como o conjunto de interesses das velhas elites socioeconômicas aliadas a setores a elas subservientes, que se fizeram muito claras nos anos recentes e que se organizaram para a campanha política eleitoral de 2018, apresenta uma promessa já sendo cumprida de recrudescimento das agressões físicas e simbólicas aos povos indígenas originários e demais grupos minoritários brasileiros. Minoritários não sob o aspecto numérico, se os tomarmos em conjunto, mas em razão das relações de poder postas.

Mas os diversos povos indígenas do Brasil, “os índios”, assim denominados por possuírem circunstâncias passadas e presentes em comum, continuarão lutando por seus direitos originários dessa maneira, como um. É como “índios” que conquistaram a positivação de seus direitos, e é assim que continuam e continuarão lutando por sua efetivação, sem duvidar por um momento que são kaiowá, terenas, mundurukus, xavantes, yanomamis etc., a despeito das novas ofensivas desse Estado antropófago que busca integrá-los, assimilá-los e devorá-los, consumindo suas proverbiais forças e suas terras.

Crizantho Alves Fialho Neto é bacharel em Comunicação Social pela Universidade de Brasília e Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Grande Dourados. Indigenista Especializado na Funai em Dourados-MS, onde atua principalmente junto às comunidades indígenas do sul do Mato Grosso do Sul em questões de direitos coletivos.

Eduardo Raffa Valente é pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de São Paulo. Procurador Federal com histórico de lotação na Procuradoria Federal junto à Funai em Dourados-MS, onde atuou na defesa e proteção das comunidades indígenas do sul do Mato Grosso do Sul.

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