Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

Bruno Pereira, presente!

Perdemos o corpo físico de Bruno. Mas ele hoje segue presente, distribuído em todos aqueles que, de diferentes formas, foram tocados por ele e pela sua história

Foto: Reprodução/TV Globo
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Este texto abre uma série de reflexões dedicadas a compreender como a internet e as novas mídias vêm mudando a política, na esfera eleitoral e além. Sua escrita, contudo, foi interpelada por um evento trágico: o assassinato covarde de Bruno Pereira e Dom Phillips no Vale do Javari, no exercício do seu trabalho de proteção à área com o maior contingente de índios isolados no mundo.

Embora possa parecer afastado da política eleitoral, este acontecimento reverbera uma das minhas primeiras constatações sobre a política em redes sociais: sua capacidade de complementar, e ao mesmo tempo substituir, corpos físicos de indivíduos no mundo offline.

Na antropologia, aprendemos que a visão do senso comum ocidental de que a fonte da agência e das decisões é sempre o indivíduo não apenas é equivocada, mas é uma anomalia no conjunto do modo como outras culturas entendem a questão. A digitalização da política faz vir à tona contradições inerentes a este arranjo, notadamente nos termos daquilo que alguns, inclusive eu mesma, vimos chamando de populismo. Embora as mídias digitais sejam altamente individualizadas na interface com o usuário, elas são altamente relacionais no seu modo de operação algorítmico. O fato de os algoritmos estarem ocultos  para o usuário individual produz uma série de paradoxos – entre indivíduo e coletivo, liberdade e controle, espontaneidade e manipulação – que precisamos desfazer para que possamos atuar politicamente neste novo ambiente de forma eficaz e ética.

O caso de Bruno e Dom também mostra como teorias da conspiração tornam-se, algumas vezes, profecias auto-cumpridas

Os povos indígenas da Amazônia brasileira estão entre as muitas culturas que dificilmente recaem nesse tipo de paradoxo, pois reconhecem o caráter relacional, ou distribuído, dos corpos individuais: todos somos ao mesmo tempo um, e muitos. É na violência, desparecimento ou morte de um desses corpos, as relações que o constituem vêm à tona de modo mais evidente.

Quando Bruno Pereira desapareceu, as primeiras pessoas a manifestarem seu corpo distribuído foram os indígenas do Vale do Javari – em especial, aqueles que ele vinha treinando na gestão e defesa do seu território. Território deixado à própria sorte pelo governo, à mercê de garimpeiros, pescadores ilegais, traficantes de drogas, armas e todo tipo de crime.

Como explicou Beto Marubo no velório do amigo, as longas expedições de Bruno junto com os indígenas pela floresta tinham como filosofia que ninguém jamais fosse deixado para trás. Assim que chegou a notícia de que ele e Dom não haviam chegado a Atalaia do Norte, os indígenas do Javari imediatamente partiram para as buscas – um contingente que, nos dias seguintes, chegou a mais de 100 indivíduos. Além disso, contou Beto, para eles a alma do filho pertence à mãe, e eles não podiam descansar até encontrar Bruno e entregá-lo à mãe, para que todos pudessem, finalmente, ficar em paz. Essa missão foi cumprida no dia de Corpus Christi, com a localização dos corpos. Bruno foi velado e cremado com muito amor e homenagens em Recife no dia 24 de junho, dia de São João. Além dos muitos presentes, dezenas de coroas de flores chegaram das mais variadas origens: desde amigos e parentes, até sindicatos, escolas e universidades, passando por empresas, parlamentares e o prefeito e governador do estado de Pernambuco.

Mas o corpo fractalizado de Bruno cresceu ainda mais, indo muito além dos parentes e amigos de Recife, e dos povos do Vale do Javari aos quais ele dedicou sua vida. Quando seu corpo físico desapareceu, toda a rede de apoio, contatos e aliados que ele havia construído durante anos junto com Beto e outros, emergiu instantaneamente. Servidores do judiciário e outros órgãos federais e regionais, jornalistas e veículos de imprensa de dentro e fora do país, associações indígenas e de indigenistas, organizações internacionais. Pessoas de todo o Brasil e exterior, que não conheciam Bruno, passaram a repercutir o caso, enviaram mensagens de solidariedade, pressionaram pelas buscas e participaram de vaquinhas de apoio à família. Esta não recebeu nem um telefonema, nem uma manifestação do chefe de Bruno, o presidente da Funai. 

Quando olhamos para quem apareceu no lugar do corpo desaparecido de Bruno, não restam dúvidas sobre com quem ele podia – e não podia – contar. O abandono do Vale do Javari pelo Estado brasileiro se manifestou no atraso e na insuficiência do apoio das forças federais às buscas, com exceção feita a poucos indivíduos que já eram parte das redes da Univaja. Esse fato repercutiu de maneira patética – que uma jornalista britânica qualificou de “surreal” – na entrevista auto-congratulatória dos representantes da Polícia Federal, Exército e outras forças da ordem realizada bem longe, em Manaus. Pessoas para quem os indígenas permanecem invisíveis há 500 anos, e que sequer creditaram a eles a descoberta do local do crime – sem a qual, possivelmente, as famílias ainda não teriam conseguido enterrar seus mortos.

O caso de Bruno e Dom também mostra como teorias da conspiração tornam-se, algumas vezes, profecias auto-cumpridas. Antes da internet propiciar a explosão, e poderíamos até mesmo dizer a normalização, do pensamento conspiratório, um dos seus principais precursores no Brasil sempre foi as Forças Armadas. Projetar uma ameaça comunista onipresente, ou um complô globalista pela internacionalização da Amazônia, são formas de inventar relevância e justificar privilégios por parte de uma elite do funcionalismo que, na falta de um inimigo externo real, sempre buscou inimigos “infiltrados” dentro do próprio povo brasileiro. 

A falsa profecia se auto-cumpre no caso do Vale do Javari. Abandonados pelo governo federal à própria sorte, os povos autóctones recorrem a aliados “globalistas” como a imprensa, os especialistas, as ONGs de proteção ambiental e indígena, muitas delas de fato ligadas a movimentos transnacionais. Enquanto acusações de infração à soberania nacional lhes são imputadas nas guerras de narrativas, o que ocorre na vida real é a invasão crescente do território nacional por redes internacionais de crime organizado que operam sob a omissão, e possível conivência, de membros do Estado e de suas forças da ordem.

Quando Bruno e Dom desapareceram, a teoria da conspiração de Ratanabá, cidade subterrânea supostamente escondida na Amazônia, voltou com tudo nas redes sociais, no YouTube e em aplicativos de mensagens. Conteúdos desse tipo são uma boa aposta para criar ruído e aumentar a entropia nas mídias digitais, num momento de exposição da omissão do governo federal diante de um crime grave na mesma região. Ao invés de os algoritmos do buscador do Google ou das recomendações do YouTube mostrarem notícias confiáveis sobre a Amazônia em torno do caso Bruno e Dom, mostravam as fantasias de Ratanabá.

Tomados individualmente, Ratanabá e outros fakes são cortinas de fumaça temporárias. Mas quando esgotam sua função de ocupar espaço no ambiente informacional por alguns dias ou horas, são logo substituídas por outras ondas de narrativas falsas, sensacionalistas ou conspiratórias. Tomadas no agregado, elas efetivamente logram ocupar posições na guerra comunicacional travada nos ambientes digitais. É hora de entender melhor essa lógica e contra atacá-la: não com as mesmas armas, mas traduzindo em força, união e resiliência as perdas que temos no mundo real. 

Perdemos o corpo físico de Bruno. Mas ele hoje segue presente, distribuído em todos aqueles que, de diferentes formas, foram tocados por ele e pela sua história. Bruno está em todos aqueles que se sensibilizaram, oraram, se indignaram, choraram e cantaram o canto kanamari que ele nos ensinou. Está na constelação marubo de Beto, na Jerusalém celeste do diácono, no kadish do rabino, nos encantados dançados pelos Xukuru e Pankararu, no manto rubro-negro do Sport Clube do Recife, na disputa dos bois em Parintins, nos seus filhos e nos filhos dos povos do Javari que levarão adiante seu legado. 

Bruno cumpriu seu destino, com coragem e abnegação. E agora, precisamos levar adiante o nosso, que é, sobretudo, exigir justiça. A justiça cármica, que está guardada. A justiça criminal, para que todas as linhas de investigação sejam levadas até o final: para fora do país, para escritórios e bancos, até para Brasília se preciso for. E a justiça política, para seguirmos construindo o Brasil sonhado por Bruno, Dom e pelos povos da floresta.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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