Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Brumadinho e o capitalismo

Maximizar resultados segue a lógica titânica do sistema, na qual o setor financeiro submete as empresas ao curto prazo

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Dia sim, outro também, surgem novas informações a respeito da tragédia de Brumadinho. A sucessão de revelações confirma que a Vale do Rio Doce não escapou, nem poderia escapar, às leis que regem a concorrência capitalista na era da desregulamentação e da financeirização.

O comportamento da mineradora brasileira reproduziu os cálculos da General Motors em 1969. Mãe e quatro filhos sofreram queimaduras em 60% do corpo depois de uma colisão traseira no Chevrolet Malibu que ocupavam. Diante dos 500 acidentes com vítimas ocorridos naquele ano provocados por falhas na colocação dos tanques de gasolina, a empresa calculou os custos dos reparos de 41 mil veículos em circulação e os comparou com o valor de 200 mil dólares das indenizações pagas aos 500 acidentes ocorridos no período. As indenizações custariam 2,40 dólares por veículo, contra 8,59 para tornar os tanques mais seguros.

Não vou reproduzir aqui os argumentos e avaliações exaradas pelo professor Fernando Sarti em seu artigo “Vale: Uma Empresa Financeirizada”. Publicado no Observatório de Economia do Le Monde Diplomatique – Brasil, o artigo contou com minha modestíssima colaboração.

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O comportamento da Vale revela como a lógica financeira penetrou de forma agressiva e dominante na estratégia das empresas. O mercado de capitais tornou-se mais invasivo e dominador, estreitando o raio de manobra das empresas que estão cada vez mais parecidas umas com as outras, independentemente do setor em que operam.

Os representantes dos fundos exercem rígido controle sobre os resultados financeiros e são, eles mesmos, controlados pela ditadura dos resultados trimestrais que informam os analistas de mercado encarregados de classificar as ações das companhias listadas nas bolsas de valores. Nos anos 1960, um investidor carregava seu portfólio de ações por nove ou dez anos. Hoje, o prazo médio é um ano.

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Inverteu-se a relação entre os recursos destinados ao investimento e aqueles utilizados para propiciar a elevação “solidária” dos ganhos dos acionistas e a remuneração dos administradores (stock options). A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou as compras das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos açoitadas com o guante da marcação a mercado. Os rigores da marcação a mercado obrigam os gestores de portfólio a se submeter às oscilações de curto prazo nos preços dos ativos e das dívidas. Assim, uma variação brusca no chamado “custo de carrego” de uma posição em ativos coloca à prova a capacidade dos gestores de recursos em antecipar corretamente as tendências do mercado.

O capital carrega uma alma atormentada por impulsos aparentemente contraditórios: precisa existir sob a forma “livre” e líquida e, ao mesmo tempo, solidamente ancorado em estruturas empresariais crescentemente centralizadas. Apenas desta maneira pode fluir sem obstáculos para colher novas oportunidades de ganhos patrimoniais, reforçando, concomitantemente, o seu poder de mercado.

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A expansão e diferenciação de funções nos modernos sistemas financeiros conferem plasticidade às formas de centralização do capital. Nos tempos da “economia global”, o objetivo dessas formas socializadas do poder privado é diversificar a riqueza de cada grupo, distribuí-la por vários mercados e assegurar o máximo de ganhos patrimoniais a curto prazo.

Dissipam-se as fronteiras entre a economia real, aquela “produtiva” e a economia dita “improdutiva” e parasitária da finança. A inteligência artificial, a internet das coisas e a robotização são incansáveis em sua faina de metamorfosear a materialidade da produção na imaterialidade das formas financeiras, tornando visível e quase palpável o processo que Karl Marx chamou de abstração real.

O filósofo Franco Bifo Berardi cuidou das relações entre as novas gerações dos sistemas de máquinas e a financeirização: “Em suas etapas mais recentes, a produção capitalista reduziu a importância da transformação física da matéria e a manufatura física de bens industriais, ao propiciar a acumulação de capital mediante a combinação entre as tecnologias de informação e a manipulação das abstrações da riqueza financeira. A informação e a manipulação da abstração financeira na esfera da produção capitalista tornam a visibilidade física do valor de uso apenas uma introdução na sagrada esfera abstrata do valor de troca”.

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