

Opinião
Bolsonaro inelegível
Noves fora, qual o alarde?


A inelegibilidade de Jair Bolsonaro configura uma medida extrema da Justiça Eleitoral brasileira. Nesses termos foi acertadamente noticiada a decisão do TSE, atraindo a polêmica esperada e reaquecendo o debate sobre os limites da intervenção do Judiciário nos destinos políticos do País.
A legítima preocupação com a politização do Judiciário brasileiro merece, contudo, análise cuidadosa, sob pena de contribuir para a crise de legitimidade da qual o Brasil começa a se recuperar. É bom lembrar, de partida, que a complexidade do sistema de justiça nacional traz implicações significativas na forma como a Justiça e a política se relacionam em diferentes níveis da política e âmbitos da Justiça. A aplicação automática das teorias forjadas em um nível de análise para outro nem sempre auxilia na compreensão do fenômeno.
Trata-se da Justiça Eleitoral, uma justiça especializada que ocupa o centro da estrutura de governança eleitoral no País. Esse ramo da Justiça está em posição institucional privilegiada no desempenho daquele conjunto de atividades que proporciona aos eleitores, partidos e candidatos a certeza sobre os procedimentos, que legitima a incerteza quanto aos resultados – condição sine qua non de eleições competitivas.
O TSE ocupa o ápice da Justiça Eleitoral. Tem competência para organizar as eleições presidenciais e adjudicar os conflitos oriundos do processo eleitoral que define o/a presidente. A indicação política dos integrantes do TSE e a influência exercida pelo STF sobre o desempenho do Tribunal Eleitoral, dadas as regras de composição, mitiga a independência formal que a Justiça Eleitoral ostenta desde a sua criação, em 1932, o que, na prática, repousa nas garantias da magistratura, no orçamento próprio e no acesso meritocrático à carreira. Não é pouco. E, ademais, a independência da Justiça Eleitoral não se confunde com sua alienação política.
De fato, o modelo brasileiro de governança eleitoral favorece o insulamento da Justiça Eleitoral e a judicialização da competição eleitoral, potencializando a desconfiança pública sobre a imparcialidade de seu desempenho, fundamental para a legitimação dos processos eleitorais e imprescindível para a qualidade e a consolidação das democracias. A peculiar lógica de construção de legitimidade da Justiça (Eleitoral), contudo, induz a atuação imparcial – no sentido de ser publicamente justificada – pela atenção que deve ser devotada ao contexto político. A Justiça não retira sua legitimidade de um processo de autorização (como é o caso dos políticos, que são eleitos). Tampouco detêm, os tribunais, domínio dos instrumentos necessários para fazer cumprir as decisões que proferem. É preciso estar em sintonia com a opinião pública, portanto, forjando confiança pública por meio de um desempenho percebido como justo (imparcial e eficiente) pela sociedade.
A possibilidade dos tribunais de se manterem independentes, reduzindo a níveis irrisórios as interferências diretas de elites políticas e econômicas sobre seu desempenho, demanda, portanto, sensibilidade política, a se traduzir em apoio público.
A decisão do TSE não é expressão de politização da justiça, a sugerir parcialidade. Não há indicador de que tenha havido atuação dirigida por interesses particulares nem na condução do processo nem no conteúdo da decisão. Tratava-se de uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), instrumento jurídico adequado à garantia da lisura e regularidade dos processos eleitorais, por meio do qual se apura e combate, dentre outros, o abuso do poder político. Embora demande instrução, no caso em debate a prova estava quase totalmente pré-constituída, o que justifica o fato de estar avançada em relação a outras que ainda tramitam no TSE. Ademais, a trajetória recente do tribunal dá testemunho da seriedade com que enfrenta o tema das fake news. O TSE organizou um Programa de Enfrentamento à Desinformação e, diga-se, havia estabelecido precedente no julgamento do deputado Fernando Francischini.
A decisão do TSE é previsível, considerando o quadro institucional de governança eleitoral no Brasil e é, por fim, publicamente justificável. Tem amparo legal, jurisprudencial e está largamente ancorada nos fatos documentados de ataques do ex-presidente Bolsonaro às instituições democráticas, ao processo eleitoral e ao próprio Tribunal Superior Eleitoral.
Noves fora, qual o alarde? •
Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bolsonaro inelegível’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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