Opinião

assine e leia

Bolsonarismo fascista

Como o golpismo aproveita os impulsos humanos mais cruéis

Bolsonarismo fascista
Bolsonarismo fascista
O terrorismo em Brasília foi organizado à semelhança do incêndio do Reichstag - Imagem: AFP/Arquivo
Apoie Siga-nos no

Na posteridade do Dia da Independência, o jornalista Matheus Leitão escreveu na revista Veja: “Órgãos de inteligência estão investigando uma suspeita de ataques ao 7 de setembro com viés golpista – e o intuito de criar um factoide político para mudar o curso da eleição de 2022 – envolvendo grupos radicais de direita. O ato criminoso seria realizado para ferir os próprios bolsonaristas, gerar pânico na sociedade e, em seguida, colocar a culpa na esquerda”.

A empreitada fascista ensaiada em 7 de setembro foi executada no dia 8 de janeiro de 2023, com a cumplicidade das forças de segurança – militares e policiais. Essa conivência indica o descompromisso desses funcionários públicos com os princípios do Estado Moderno. Digo Estado Moderno para significar o longo processo de construção das instituições que surgiram no alvorecer do capitalismo de Adam Smith.

O contrato social que dá origem ao Leviatã e suas leis está contaminado pelos anseios do desejo e pelos temores da violência. O medo é o medo do outro. Hobbes nega o estado de natureza idílico como o concebeu Locke, o bom selvagem, tal como também o idealizou Rousseau. Os homens só convivem pacificamente na sociedade em que o Estado está consolidado, quando os egoísmos da sociedade civil já estão pacificados pelas leis soberanas.

Nessa caminhada foram muitos os achaques e tropeções dos ocupantes eventuais do Estado, achaques que ameaçaram os princípios destinados a assegurar a liberdade e a igualdade dos cidadãos. Os conspiradores nazi-bolsonaristas não conseguem sequer originalidade em seus atentados contra a democracia. Pior ainda, no afã de preparar e executar suas perversidades terroristas, os “homens de bem” sinalizam que estavam organizando a patacoada de Brasília à semelhança do Incêndio do Reichstag.

Qualquer semelhança não é mera coincidência. Onde há fumaça há fogo, e onde há fogo, teorias conspiratórias certamente seguirão cumprindo suas funções destrutivas. Foi isso o que aconteceu na Alemanha em 27 de fevereiro de 1933, quando o Parlamento alemão, o Reichstag, foi vitimado por um ataque incendiário.

A jornalista e escritora Lorraine ­Boissonneault, da Smithsonian ­Magazine, escreveu um relato sucinto e preciso a respeito das circunstâncias sociais e políticas que levaram ao atentado incendiário ao Reichstag. Vou reproduzir dispensando as aspas. Diz Lorraine que a derrocada econômica do início da década de 1930 não permitia a nenhum partido político obter maioria no Reichstag. A Alemanha ficou à mercê de frágeis coalizões políticas incapacitadas de tomar as decisões que a catástrofe econômica recomendaria. Diante do caos político, o presidente Paul von Hindenburg dissolveu o Reichstag várias vezes. Eleições frequentes se seguiram.

Os nazistas se alinharam com outras facções de direita e gradualmente trabalharam até 33% dos votos – mas não conseguiram alcançar uma maioria plena. Em janeiro de 1933, Hindenburg relutantemente nomeou Hitler como chanceler a conselho de Franz von Papen, um ex-chanceler descontente que acreditava que os partidos burgueses conservadores deveriam se aliar aos nazistas para manter os comunistas fora do poder.

E 5 de março foi definido como a data para outra série de eleições do Reichstag, na esperança de que um partido pudesse finalmente alcançar a maioria.

Os homens só convivem em paz na sociedade em que o Estado está consolidado pelas leis soberanas

Enquanto isso, os nazistas infiltraram-se na polícia e capacitaram membros do partido como agentes da lei. Em 22 de fevereiro, Hitler usou seus poderes como chanceler para inscrever 50 mil homens nazistas da SA (também conhecidos como Stormtroopers) como policiais auxiliares. Dois dias depois, Hermann Göring, Ministro do Interior e um dos nazistas mais próximos de Hitler, ordenou um ataque à sede do Partido Comunista. Após o ataque, os nazistas anunciaram (falsamente) que tinham encontrado evidências de material sedicioso. Alegaram que os comunistas planejavam atacar prédios públicos (qualquer semelhança não é mera coincidência).

Na noite de 27 de fevereiro, por volta das 9 horas, pedestres perto do Reichstag ouviram o som de vidro quebrando. Logo depois, as chamas eclodiram no prédio. Os bombeiros levaram horas para apagar o incêndio, que destruiu a cúpula dourada do Reichstag, causando mais de 1 milhão de dólares em danos. A polícia prendeu um trabalhador da construção holandesa desempregado chamado Marinus van der Lubbe no local. O jovem foi encontrado do lado de fora do prédio com bombas em sua posse e estava ofegante e suado.

“Este é um sinal dado por Deus”, disse Hitler a Von Papen quando chegaram ao local. “Se este fogo, como acredito, é obra dos comunistas, então devemos esmagar essa praga assassina com um punho de ferro.” O incêndio foi usado por Adolf ­Hitler para impulsionar os temores públicos com o propósito de consolidar o poder da escumalha nazista. O episódio de Brasília me instigou a reler o livro A Sociedade de Massas e o Fascismo, do psicanalista Wilhelm Reich.  Na esteira de Freud, Reich busca identificar as raízes psicossociais do homem fascista.

“Na camada superficial de sua personalidade, o homem comum é reservado, educado, compassivo, responsável, consciente. Não haveria tragédia social do animal humano se essa camada superficial da personalidade estivesse em contato direto com o núcleo natural profundo. Infelizmente, não é o caso. A camada superficial da cooperação social não está em contato com o núcleo biológico profundo de sua autoestima; é suportada por uma segunda camada, de caráter intermediário, que consiste exclusivamente de impulsos cruéis, sádicos, lascivos, arrebatadores e invejosos. Representa o ‘inconsciente’ freudiano ou aquilo que é reprimido….

“O caso do fascismo, em contraste com o liberalismo e as transformações sociais genuínas, é bem diferente. Sua essência não incorpora nem a superfície nem a profundidade, mas, em geral, a segunda camada. Quando este livro foi escrito pela primeira vez, o fascismo era geralmente considerado como um ‘partido político’, que, como outros ‘grupos sociais’, defendia uma ‘ideia política’ organizada. Segundo essa avaliação ‘o partido fascista estava instituindo o fascismo por meio da força ou através de manobra política’…

“Ao contrário disso, minhas experiências médicas com homens e mulheres de várias classes, raças, nações, crenças religiosas etc. me ensinaram que o ‘fascismo’ é apenas a expressão política organizada da estrutura do caráter do homem médio, uma estrutura que não se limita nem a certas raças ou nações nem a certos partidos, mas é geral e internacional. O ‘fascismo’ é a atitude emocional básica do homem reprimido de nossa civilização e sua concepção mecanicista-mística da vida. É o caráter mecanicista-místico do homem moderno que produz partidos fascistas, e não vice-versa.” •


*Este artigo inclui o texto “Bolsonaro imita Hitler?”, já publicado no site de CartaCapital.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bolsonarismo fascista*”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo