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Bicentenário de uma farsa

Em veículos emperrados e com continências à bandeira estadunidense e posturas “imbrocháveis”, quem são os imbecis que veem independência onde jaz uma terra arrasada?

Bicentenário de uma farsa
Bicentenário de uma farsa
Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)
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A teoria literária caracteriza como farsa o estilo textual, ou de encenação, que envolve uma série de acontecimentos ridiculamente improváveis, com atuação e caracterização grosseiras, toscas e ­mal-ajambradas, produtoras de efeito risível.

A etimologia da palavra aponta, no francês, para o verbo farcir – o ato de preencher e, provavelmente, pelo seu uso recorrente no século XVI, para referir-se aos interlúdios cômicos em textos ou encenações religiosas. Seria algo como “encher linguiça”. A comemoração de 200 anos de “independência” do Brasil foi uma farsa para encher linguiça.

Atenhamo-nos aos fatos históricos: um filho encena “um golpe” no pai. O processo de “proclamação da independência” é mais um acordo tácito entre partes do que qualquer outra coisa, uma vez que, logo após a proclamação, Pedro I aceita pagar por um empréstimo exorbitante que a coroa portuguesa havia feito com a Inglaterra.

Tal pagamento visava indenizar (?!) Portugal por ter perdido uma colônia. O bordão de “independência ou morte” diz pouco do processo real, que continuou urdido sobre a dependência econômica do país junto a outras potências imperialistas e sobre a matriz de trabalho escravo. Vale ressaltar, por exemplo, que, em 1831, Pedro I estabelece o Código Criminal do Império, que prescrevia pena de morte à pessoa negra que “ofendesse” seu senhor ou outro membro de sua família.

O jornalista Tiago Rogero compilou mais de dois anos e meio de um ­excelente trabalho de pesquisa no podcast ­Projeto Querino, com a produção da Rádio ­Novelo, e dividido em oito episódios. O podcast é uma ótima oportunidade para quem deseja compreender os principais episódios da história do Brasil por meio de um olhar afro centrado.

Já no primeiro episódio, aprende-se que o prédio que conhecíamos como Museu Nacional (incendiado em 2018) havia sido o palácio (de São Cristóvão) de residência oficial da família real e das subsequentes famílias imperiais. Tanto o prédio quanto a Quinta da Boa Vista, onde ele fica localizado, foram doados a essas famílias por Elias Antônio Lopes, um traficante de pessoas escravizadas.

A estrutura brasileira de poder “nacionalista” está, desde o início, enraizada no que havia de mais podre e condenável naquele tempo. Toda a riqueza produzida pela colônia e depois pelo País foi gerada através da exploração mais abjeta das vidas dos povos indígenas e africanos e de seus descendentes.

A teoria marxista da dependência é outro aporte que nos auxilia a pensar de forma crítica a dita “independência” do Brasil. A experiência capitalista nacional tem a especificidade de ocorrer num tempo histórico que já não é aquele do desenvolvimento das experiências de capitalismo originário, mas, sim, de um capitalismo de monopólios. Essa teoria visa explicar a relação entre nações que, formalmente, são livres e capitalistas, mas que perpetuam uma forma de troca colonial, na qual a periferia do sistema transfere valor ao seu centro. Dessa forma, a desigualdade é perpetuada como condição estrutural para o funcionamento desse sistema econômico.

Autores como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Jaime Osório entendem o atraso latino-americano como a ausência das possibilidades materiais de autodeterminar os destinos e os rumos dos nossos povos e economias – mantidos em papéis subalternos.

Entender que, 200 anos após a “independência”, o País siga cumprindo o papel de “celeiro do mundo” é compreender de que forma a industrialização, a elevação nos níveis de produção de ciência e tecnologia ou mesmo a melhora na infraestrutura para a população não figuram como interesses das classes dominantes. Suas lógicas de acumulação de riqueza prescindem de tais práticas. A exportação de soja in natura ou de petróleo cru são dois exemplos desse cenário.

Se, após 200 anos, seguimos economicamente dependentes e empobrecidos, tecnologicamente sucateados, politicamente subalternizados, humanamente degradados, violentados e famintos, há de se perguntar: que independência seria essa da qual falam aqueles que ocupam as ruas com vergonhosas demonstrações militares?

Em seus veículos que emperram e seus paraquedistas que não aterrissam, e com seus discursos subservientes a Israel, suas continências batidas à bandeira estadunidense, suas abjetas posturas “conservadoras” e “imbrocháveis”, quem são os imbecis que veem independência onde jaz uma terra arrasada? Não queremos essa “independência”. Queremos revolução. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bicentenário de uma farsa”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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