Opinião

Benedita da Silva: o pacote anticrime de Moro dá o direito de matar

Deputada diz que projeto oficializa o extermínio de jovens negros das periferias brasileiras

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Apresentado como solução contra a criminalidade, o pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, na verdade dá licença para os agentes públicos matarem, pois essa é a linha mestra das propostas. Nada mais faz do que oficializar aquilo que sempre foi feito contra as populações das favelas e periferias, com a tolerância das instituições.

Instalada no Senado Federal, em 2015, a CPI do Assassinato de Jovens apurou que, no Rio de Janeiro, 99% dos casos das mortes em confronto com policiais são arquivados sem investigação. Os autos de resistência passaram a ser a moeda corrente do combate à criminalidade. A CPI revelou que o Brasil está no topo dos países que têm mais homicídios, e, dos 60 mil assassinados anualmente, quase metade das mortes é de jovens entre 16 e 17 anos de idade.

É fato histórico que as populações das favelas e periferias, em sua grande maioria constituídas por negros e indivíduos de baixa renda, vivem numa espécie de “cativeiro social”, como muito bem expressou o enredo da escola de samba Paraíso do Tuiuti, no Carnaval de 2018.

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Para esses segmentos sociais discriminados, excluídos dos direitos de cidadania garantidos pela Constituição, não há política de segurança pública, mas repressão permanente e muita “bala perdida”, como se chama no Brasil os efeitos colaterais em uma guerra.

Casos como o de Cláudia Ferreira, do Morro da Congonha, que ainda viva foi arrastada por 350 metros presa ao para-choque de uma viatura policial, em setembro de 2018, e, recentemente, o da menina Jenifer Gomes, de 11 anos, morta por um tiro de fuzil no peito, e dos 13 jovens do Morro do Fallet, cuja morte em confronto é desmentida por testemunhas, só reafirmam esses efeitos colaterais em nosso país. Ou seja, “balas perdidas” e execuções sumárias são, infelizmente, o cotidiano de qualquer favela, não apenas no Rio de Janeiro, mas igualmente em outros estados.

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O que Moro propõe, refletindo o clima de violência que Bolsonaro institucionalizou no governo, é uma “guerra sem prisioneiros”, cujas consequências farão elevar ainda mais a taxa de homicídios dos três lados envolvidos: os bandidos, os agentes públicos e os moradores inocentes das favelas e periferias.

Não é pela força bruta militarizada ou mesmo das Forças Armadas, como as repetidas intervenções nas favelas do Rio de Janeiro, que se enfrentará o crime organizado. Nas comunidades está a ponta visível do tráfico, mas nelas não se produzem drogas nem armas. Por outro lado, muitos jovens são atraídos pelo poder do tráfico porque não veem futuro numa vida sem estudo e sem emprego.

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O ministro quer combater o crime no lugar errado

Portanto, o combate consequente ao crime organizado faz-se dentro e fora das comunidades. E para ter êxito precisa estar articulado com políticas sociais, de geração de emprego e respeito efetivo à cidadania de todos, sem discriminar quem é negro e pobre.

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A proposta de Moro é completamente oposta, pois, além de focar o conflito armado nas comunidades, garante ao agente público o direito de matar se estiver numa situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Com motivos tão subjetivos fica aberto o caminho para as execuções sumárias, que parece ser o objetivo real da proposta.

Na visão de Moro e Bolsonaro, o “homem de bem”, que precisa de arma para se defender, não está na favela nem é negro e pobre. Simbolicamente, ele representa o elemento de ligação entre a barbárie, praticada contra as comunidades, e o uso generalizado da violência como primeiro recurso contra qualquer desavença ou mesmo contrariedade racista, misógina e homofóbica. É a barbarização geral das relações humanas num país onde, apesar de tudo, ainda se confia no futuro.

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Os avanços sociais conquistados na Constituição de 1988, sobretudo os capítulos dos direitos da mulher, do negro e do indígena, deram impulso a fortes correntes por mudanças democráticas de fundo estrutural, que levaram a 13 anos de governos progressistas. Muitos daqueles avanços constitucionais saíram do papel para a vida justamente nesse período. É impossível avaliar o impacto para a vida de uma mulher chefe de família de baixa renda receber um imóvel popular ou ver o seu filho ou filha se formar numa universidade.

O direito à moradia e o direito à educação superior pública e gratuita, coisas que hoje estão tirando do povo, representam conquistas sociais que reduzem enormemente a base social do tráfico e abrem uma avenida para o consenso social e o crescimento cultural.

As novas gerações, herdeiras das lutas e conquistas constitucionais dos seus pais e avós, voltam a viver a tragédia de perder as oportunidades que tinham e o enorme desafio de novamente conquistar os seus direitos que agora estão sendo roubados.

No Rio de Janeiro, 99% dos homicídios cometidos por policiais são arquivados

O pacote anticrime de Moro, como também a Reforma da Previdência, ambas diretamente relacionadas à vida do povo, seguem o modelo autoritário de não dialogar com a sociedade, nem mesmo com seus representantes políticos.

A confiança que o nosso povo tem no futuro, em parte porque sempre sobreviveu às margens da sociedade, preserva a memória dos direitos sociais usufruídos até há poucos anos e demonstra uma confiança que não se abala com os rosnados do autoritarismo e sabe esperar o momento de entrar em cena.

A resistência do “cativeiro social” representa uma linha invisível, mas, ao mesmo tempo, extremamente forte e presente nas comunidades e periferias, uma resistência que, apesar deles, produz luta e muitas Marielles.

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