Beatriz Della Costa

Cientista social e cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil que estuda a inovação política e estimula a imaginação política no Brasil e na América Latina. É também apresentadora do podcast "Jogo de Cartas", da Deezer, que narra a história do Lobby do Batom

Opinião

As pessoas na sala de jantar

Michel Temer e sua trupe estão ocupados em nascer e morrer, mas talvez os tigres e os leões já estejam soltos nos quintais

Foto: Reprodução/Redes Sociais
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O vídeo que mais circulou nos últimos dias pelos nossos feeds, stories e reels é um triste retrato do poder no Brasil. Em meio a um cenário tão requintado quanto antiquado, homens grisalhos engravatados – incluindo um ex-presidente e outros caciques da política, magnatas da mídia, empresários e advogados – bajulam uns aos outros enquanto riem dos brasileiros. Sim, dos brasileiros. Ainda que, à primeira vista, a piada pareça ser com Bolsonaro, está mais do que claro que o deboche mesmo é com a gente, que acredita na democracia.

A pergunta que fica: seremos capazes de mudar alguma coisa enquanto o destino do País estiver sendo definido numa mesa como aquela? Sei que existem muitos Brasis, mas, aqui fora, para onde quer que eu olhe, não encontro o Brasil exposto naquele vídeo. Vejo ali um Brasil paralelo, um Brasil absolutamente deslocado do povo, desconectado da realidade, descomprometido com o futuro, em descompasso com as necessidades mais básicas da população. Um Brasil conduzido por tapinhas nas costas e gargalhadas amarelas, um Brasil de sapato lustroso e cabelo engomado, um Brasil que em nada – nada, nada, nada – se parece com o que é ser brasileiro.

Esse Brasil tão estranho não é o país em que vivemos, mas, infelizmente, é o país que nos governa. E esse é um Brasil viciado em seu próprio passado, em seus próprios preconceitos, em seu próprio autoritarismo. Um Brasil ainda colonial – que sente orgulho e ri de sua herança racista, misógina, genocida. Um Brasil vergonhoso que, sem qualquer vergonha na cara, se alimenta de suas próprias mazelas. Sim, os pratos servidos naquele jantar foram desigualdade social, desigualdade racial e desigualdade de gênero. Só não foi um rodízio de desigualdades porque aquele é um Brasil muito fino (sic) para esse tipo de coisa. A desigualdade ali é à la carte.

O que aquele vídeo mais representa é a estagnação da nossa política. Aquela sala emana retrocessos. Os futuros estão do lado de fora – e vêm da imaginação daqueles que sempre estiveram excluídos da política representada por aqueles senhores.

A imaginação política acontece quando a diversidade e a pluralidade ocupam o poder, construindo futuros a partir de demandas reais e de quem as vive ou viveu. Na política, não há transformação sem imaginação. E a imaginação, por sua vez, não existe sem criatividade. Os mesmos de sempre nunca vão produzir novas imaginações. Isso só é possível quando há uma perspectiva crítica, uma visão plural, uma ética coletiva e colaborativa que se manifesta na busca por novas práticas institucionais. O grupo no vídeo, por outro lado, não deseja nada além de sentar-se com as mesmas pessoas em outros jantares idênticos àquele.

Ainda bem que o mundo está mudando. Quando a deputada americana Alexandria Ocasio-Cortez, a AOC, vai a um evento com a elite econômica usando um vestido estampado com a frase “Taxe os ricos”, ela está se sentando a uma mesa como a daqueles senhores, apresentando seu ponto de vista e levando um novo tema à discussão. É uma expressão figurativa, mas muito simbólica, da importância da ocupação dos espaços de poder: fazendo isso, nos tornamos uma voz capaz inclusive de ecoar dentro daquela sala de jantar.

Ainda que seja um movimento recente, muitas pessoas – mulheres, pessoas negras, indígenas e jovens LGBTQI+ – estão construindo seus caminhos em busca de seus espaços. Mas para que isso deixe de ser exceção é preciso um esforço coletivo. Para estarmos representados ali será necessário agirmos politicamente, como eleitores, votando pela diversidade, e, como sociedade civil organizada, nos unindo para fortalecer a diversidade dentro dos partidos e sensibilizando a sociedade para que não desista da política “porque sempre foi assim”.  A fatalidade do “nunca vai mudar” é o que nos faz repetir os mesmos erros num loop infinito.

Cinco décadas atrás, Caetano e Gil cantaram que as pessoas na sala de jantar só estavam preocupadas em nascer e morrer – em manter o poder e o status quo. Esse vídeo tão infame é, sim, a prova de que nada mudou. Por outro lado, a indignação provocada por ele aponta que, para muitos de nós, aquilo é inaceitável. Parece que os tigres e os leões já estão soltos nos quintais.

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