

Opinião
As ONGs e a democracia
Da ditadura à redemocratização, das ruas de 1988 ao 8 de Janeiro, as organizações da sociedade civil sempre estiveram na linha de frente


Perdemos um ídolo. Mino Carta, com seus 91 anos. Sua partida nos entristece profundamente, mas sua luta continua pulsante. Este texto nasce também como um tributo ao jornalista que dedicou sua vida a dar voz aos silenciados, a desafiar o poder e a tecer, com tinta e coragem, os fios de uma imprensa livre e de uma democracia em constante construção. Que seu exemplo continue a inspirar todos aqueles que acreditam na imprensa como princípio de cidadania.
Lembro bem de 2016. O golpe contra a presidenta Dilma não foi apenas um ataque à democracia brasileira; foi também o início de um processo de ruptura dentro de mim. Aos poucos, aquilo que eu sempre considerei minha casa espiritual começou a se transformar em um lugar estranho. O espiritismo, que tantas vezes me acolheu, passou a ecoar discursos conservadores, alinhados à intolerância que tomava conta do país. Romper com ele foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida.
Em 2018, com a eleição de Bolsonaro, vi emergirem sem pudor os violentos, os intolerantes, os racistas, os LGBTfóbicos. Vi amigos adoecerem, companheiros de caminhada se esconderem ou deixarem o país. Eu mesmo fui expulso da rádio espírita onde mantinha, havia mais de dez anos, um programa semanal. Foi na CartaCapital, fundada por Mino Carta, que encontrei um novo espaço de diálogo, um espaço moldado por seu espírito crítico, sua coragem e sua fidelidade aos fatos, em que pude sustentar a voz de um espiritismo progressista até minha conversão ao candomblé.
A violência institucional também se sofisticou. Em 2019, uma reunião de educadores foi invadida pela polícia sob a acusação de “falarem mal do presidente deles”. No mesmo ano, professores tiveram um encontro interrompido por militares armados. Vieram também as perseguições silenciosas: contratos rompidos com órgãos públicos, como o do BNDES contra mulheres agricultoras; exigências de prestação de contas reabertas após dez anos, já encerradas e aprovadas, apenas para desgastar, constranger e criminalizar ONGs e seus dirigentes.
Aprendi, nesses anos, que a repressão não se manifesta apenas nas ruas. Ela se instala também nos carimbos, nas portarias, nos silêncios impostos a quem ousa sonhar. E é dessa memória de dor e resistência que parto para refletir sobre o papel das ONGs na defesa da democracia, especialmente quando ela mais se vê ameaçada.
Da ditadura à redemocratização, das ruas de 1988 ao 8 de janeiro de 2023, as organizações da sociedade civil sempre estiveram na linha de frente. Durante a ditadura militar, quando o medo e a violência impunham silêncio, foram as comunidades eclesiais de base, terreiros, evangélicos progressistas, os grupos de direitos humanos e as organizações populares que mantiveram viva a chama da participação social. Com a Constituinte de 1987–88, as ONGs foram protagonistas na consolidação de direitos sociais, ambientais e de cidadania. Não se tratava apenas de defender vítimas, mas de sonhar outro país, mais justo e plural. Foi nesse contexto que nasceu, em 1991, a Abong – Associação Brasileira de ONGs, como voz coletiva de um campo que se recusa a ser espectador: prefere ser ator da história.
Hoje, o Brasil volta a viver tempos em que a democracia é testada diariamente. O 8 de janeiro ficará marcado como a tentativa mais explícita de golpe desde a redemocratização. Mais uma vez, foi a sociedade civil organizada, ao lado das instituições, que ergueu sua voz contra a barbárie. A Abong esteve entre as organizações que denunciaram o ataque, exigindo responsabilização e reafirmando o compromisso com a Constituição.
O julgamento dos envolvidos talvez seja um dos momentos mais emblemáticos da nossa história recente. Ver no banco dos réus militares de alta patente e um ex-presidente da República acusado de violar a Constituição e tentar reimplantar uma ditadura é testemunhar a força de uma democracia que, embora fragilizada, não se dobrou. É prova de que o Estado de Direito ainda encontra, na pressão da sociedade civil e na firmeza das instituições, caminhos de sobrevivência e reinvenção.
Mas a defesa da democracia não se resume a reagir a golpes. É também tarefa cotidiana. O Pacto pela Democracia reúne ONGs como Conectas, Instituto Sou da Paz, Educafro, Fundação Tide Setubal, ABRAJI, ABIA e Transparência Internacional em torno da proteção das instituições democráticas. Já a Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político busca ir além: pensa reformas estruturais que ampliem a participação popular e enfrentem as desigualdades do sistema político. Redes distintas, mas que se complementam na construção de um horizonte democrático mais profundo.
Não podemos esquecer, no entanto, que a atuação das ONGs segue sob ameaça. Em diversas partes do mundo, governos autoritários recorrem à criminalização burocrática para enfraquecer a sociedade civil. Da Rússia à Hungria, o ataque à liberdade de associação é orquestrado. No Brasil, experimentamos tentativas semelhantes nos últimos anos: CPIs, projetos de lei restritivos, campanhas de desinformação e de deslegitimação contra ONGs e movimentos sociais.
Ainda assim, seguimos. Porque sabemos que a democracia não é apenas um sistema de governo: é uma prática cotidiana, renovada nas ruas, nos territórios, nos coletivos e nas organizações que ousam acreditar em um futuro mais justo.
As ONGs não mudam o mundo sozinhas. Mas mudam pessoas, e são as pessoas que mudam o mundo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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