Justiça
As montanhas vendidas pelo liberalismo pariram camundongos
O mirrado PIB de 2019 é a coroa da farsa traduzida no guindaste do livre-mercado que iria tirar o país do buraco


O bolsonarismo é um fenômeno de muitas expressões. Uma delas entrou no barco do ex-capitão pelas portas do lavajatismo, desde sempre integrado espiritualmente ao anti-iluminismo do clã por meio de sua maior celebridade, o aspirante a duce e ex-juiz Sergio Moro. Outra veio na bagagem de Paulo Guedes, usando o ministro da economia e sua agenda ultraliberal como álibi para conviver com uma gente que tem Pinochet e Brilhante Ustra, torturador que enfiava ratos e baratas em vaginas, como ídolos supremos.
Enquanto para a primeira categoria o amor a Bolsonaro veio a reboque da cruzada anticorrupção de Moro (hoje reduzido a leão de chácara da corrupção governista e dos milicianos ligados à família de seu chefe), a segunda esconde seus reais sentimentos e gosta de fingir que o tolera em nome da pauta econômica tocada por Guedes, repetindo o casamento histórico entre fascismo e liberalismo.
Não há novidade nesse matrimônio. O tradicional entusiasmo com que liberais aderem ao fascismo costuma se condicionar ou ao anticomunismo caricato ou à oportunidade que os manuais do Eixo lhes dão para que possam executar um projeto que, dada sua natureza anti-povo, teria grandes dificuldades em passar no peneira de processos eleitorais.
Politicagem. A Fiesp era o ponto de concentração do desfile do golpe.
No artigo “Economistas liberais precisam ser responsabilizados pelo baixo crescimento” publicado no Estadão, Daniel Pereira de Andrade, professor de sociologia da EAESP-FGV, analisa como as promessas de pujança feitas pelo neoliberalismo desde 2015 no Brasil são como montanhas que parem camundongos. O mirrado PIB de 2019 é a coroa do dogmatismo que alimenta a farsa de que é o guindaste do livre-mercado que irá tirar o país do buraco.
O descompasso entre teoria e prática, ora representado em sucessivos PIB’s desnutridos, faz o professor questionar como “essa situação coloca uma questão óbvia, mas que tem sido sistematicamente evitada: o modelo econômico liberal é realmente capaz de entregar os resultados que promete?”. Com razão, acha curioso como “os economistas liberais, que sempre louvam a responsabilidade individual no mercado, nunca se responsabilizam pelos resultados das políticas econômicas que defendem”, tendo em vista que “se a economia não funciona como o previsto, não é porque seus modelos lógico-dedutivos não são capazes de explicar a realidade, mas, inversamente, é porque a realidade política e social está atrapalhando o funcionando idealmente previsto do mercado”. Inverte-se, assim, “a lógica científica ao atribuir ao mundo, e não às suas teorias, o problema”.
A contradição apontada pelo professor Daniel também não é algo novo. No livro Anti-Dühring, Friedrich Engels explica como a ciência inaugurada pelos economistas liberais do final dos séculos XVII e XVIII não foi vista por eles como expressão das condições e necessidades de sua época, mas como uma representação da razão eterna. A conclusão, portanto, não poderia ser outra que não a de que, no lugar de formas historicamente determinadas, as leis de produção e troca são normas eternas provindas da natureza imutável.
Acontece que, se estamos tratando de um fenômeno bioquímico ao invés de social, não há como resultados no mundo real informarem de volta a teoria, lapidando-a criticamente. O saldo final dessa equação é a blindagem dogmática do livre-mercado, a salvo de qualquer questionamento em seus pressupostos teóricos. Uma espécie de religião, por assim dizer, já que a falha na entrega dos resultados que promete só pode estar no reino mundano dos homens e mulheres e não nas escrituras sagradas do laissez-faire.
O cálculo político desse desalinhamento costuma desaguar em medidas autoritárias para tirar do caminho as mediações democráticas de controle e participação popular encaradas com horror pela tecnocracia contábil do neoliberalismo, a mesma que adora denunciar populismos e se colocar como neutra e apolítica. “Ao acusar o mundo pelas falhas no funcionamento desse mercado ideal que só existe em suas cabeças, eles podem propor a radicalização da mesma política econômica como solução para os problemas que ela mesma cria”, escreve o professor Daniel, apontando para a solução padrão de eliminar “pressões da sociedade e das interferências políticas dos governantes eleitos, procurando construir na prática algo que só existe em suas teorias: um mundo econômico puro apartado da realidade social e política”.
É dessa devoção sacrossanta que nasce a ginástica retórica tirada do bolso pelos liberais quando acusados de engrossar o caldo do fascismo, depositando no ministro da economia os motivos de sua fidelidade ao ex-capitão. Se não estivessem tão envergonhados, poderiam abrir seus corações e assumir exatamente o contrário: não é por causa de Paulo Guedes que fecharam com Bolsonaro, é, sim, por causa de Bolsonaro que fecharam com Paulo Guedes.
Tamanho cinismo pode até não abalar a fé dos coroinhas do neoliberalismo, mas não é preciso ir muito longe para descobrir que, para a turma de Chicago, tanto a de ontem como a de hoje, pegar carona no fascismo é muito mais fácil e conveniente do que seguir as regras da democracia.
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