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Opinião

Artigo: O desenvolvimentismo de Celso Furtado na atual disputa política

Para Fernando de Aquino, a obra do economista facilita a formulação de políticas específicas para setores estruturalmente heterogêneos

O economista Celso Furtado, em 1983. Imagem; Reprodução/TV Cultura O economista Celso Furtado, em 1983. Imagem; Reprodução/TV Cultura
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Celso Furtado está entre os maiores, para muitos o maior, economistas da história do pensamento econômico brasileiro. Conhecido de todos que foram aluno da disciplina Formação Econômica do Brasil, pelo livro que deu nome à disciplina, Furtado foi muito além, cabendo, com todo merecimento, a identificação de maior economista desenvolvimentista do país. Passadas algumas décadas, vale investigar se seu desenvolvimentismo permanece relevante. Neste artigo, exploraremos essa relevância buscando situar a abordagem na atual disputa política.

O desenvolvimentismo pode ser entendido como a busca do desenvolvimento por meio da ação ativa do Estado. Por isso, a última onda neoliberal, que inundou o mundo no final do século passado, até com versão para exportação para os países emergentes, o Consenso de Washington, deixou essa proposta desprestigiada.

O neoliberalismo não é uma doutrina contrária ao desenvolvimento, mas à atuação do Estado para alcançá-lo. Não acreditam que possa funcionar, pois se apegam a um modelo de comportamento dos agentes econômicos que seria uma simplificação tosca. Oriundo das abordagens da Economia Clássica, podia ser representativo nas condições da Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, mas já no início do século XX foi fortemente contestado por Keynes e mesmo assim mantido na chamada Economia Neoclássica até hoje. Trata-se de modelo em que os agentes tomam as decisões para maximizar o bem-estar individual, que, em regra, se restringe a aumentar a própria riqueza.

Nessa perspectiva, motivações como ideais ou deveres não irão predominar. Políticos e gestores públicos irão se desviar dos interesses dos cidadãos para buscar riqueza pessoal e progresso na carreira. Eles seriam os agentes desse  principal, em geral pouco operante, num contexto que se supõe uma democracia liberal, em que elegem os políticos por um mandato de vários anos e os monitoram muito pouco. Assim, políticos e gestores públicos, monitorados por outros agentes também públicos e não proprietários dos recursos, só irão agir de acordo com os interesses dos cidadãos no mínimo exigido pelas instituições e nada no setor público funcionaria sem grandes desvios e desperdícios.

Essa total descrença na atuação favorável do Estado não priva o neoliberalismo de ter a própria utopia, baseada no livre mercado. Os economistas dessa linha, adotando pressupostos reconhecidamente irreais, demonstram que o livre mercado propiciará a produção máxima com os fatores de produção disponíveis, assegurando liberdade e justiça individual pelo emprego, de trabalho e capital, para os que desejarem e remuneração pelo valor que produzirem.

A persistente estagnação e o crescente aumento das desigualdades foram desgastando o neoliberalismo, que chegou a ser o principal acusado pela grave crise financeira de 2008, com sua pregação de desregulamentação dos mercados, inclusive o financeiro. Nessas circunstâncias, autores já arquivados na história do pensamento econômico, como Keynes, e nunca bem acolhidos no mainstrean, como Minsky, foram revisitados. Projetos de organização sócio econômica envolvendo o Estado de modo mais ativo voltaram a se fortalecer. Mesmo podendo ser rotulados de social-democratas, importa perceber diferenças em função da procedência.

Alguns defensores do mercado passaram a se preocupar mais com os efeitos das chamadas “dotações iniciais” – recursos não constituídos pelo próprio agente, mas recebidos de outros – e das “falhas do mercado” – benefícios e custos à margem dos mercados competitivos, poder de monopólio, mercados incompletos – identificando a necessidade de várias ações do Estado.

Então, instituem uma certa “social-democracia liberal”, ao passarem a apoiar políticas como regulação em vários mercados e atividades econômicas, instituições financeiras públicas, gastos públicos em educação, previdência, ciência e tecnologia. Para essa proposta, o protagonismo continua sendo do mercado, assim como é adotado o modelo neoclássico de comportamento dos agentes, tanto que só admitem políticas públicas horizontais, aquelas oportunizadas a todos os elegíveis de forma impessoal.

 

Nesse contexto, a “social-democracia tradicional” volta a ganhar espaço. Essa versão evoluiu de uma vertente do movimento socialista que defendia a via democrática. No século XX, com marcada influência de economistas como Keynes e Galbraith, a proposta passa a admitir a possibilidade de promover justiça social sem a necessidade de extinção da propriedade privada dos meios de produção. Contudo, é mantido o primado da política, sendo o mercado um fator que contribuiria para racionalizar e alocar os fatores de produção. Uma possibilidade de superação dos efeitos adversos desse comando privado dos recursos escassos, sem abrir mão das liberdades propiciada por instituições democráticas, seria uma distribuição gradual do capital, decorrente da acumulação de rendas mais igualitárias e de aumentos de produtividade.

Entre esses dois polos podemos situar os projetos desenvolvimentistas vigentes. Temos uma versão modernizada, ligada à social-democracia liberal. Trata-se de abordagem que agrega todos os setores, herdada da macroeconomia instituída pela síntese neoclássica e mantida mesmo com a inclusão de fundamentos microeconômicos. Terminam com utilidade limitada para a formulação de políticas de desenvolvimento em países de grande heterogeneidade estrutural.

Dentro desse desenvolvimentismo modernizado, o novo desenvolvimentismo propõe a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva como uma panaceia a assegurar o desenvolvimento. Nada garante que apenas um maior retorno, em moeda nacional, dos produtos exportados e dos substitutos dos importados vá levar à expansão generalizada da produção, produtividade, investimentos, salários. A divisão internacional da produção, com as respectivas intensidades tecnológicas, pode ser uma barreira suficiente para segurar essas transformações.

Outros enfatizam a formação de capacidades de produzir bens e serviços mais complexos. O argumento viria de grandes bancos de dados, longas séries de países e produtos que mostram forte correlação entre complexidade produtiva e indicadores sociais. Em que pese as dificuldades operacionais e de integração às cadeias globais de valor com produtos de maior complexidade produtiva, aqui também nada garantiria que esses setores de ponta fossem promover a emergência dos demais. Seria muito possível, entre nós, a ocorrência de uma “indianização” da economia, com ilhas de excelência em um mar de miséria.

Em ambas as propostas dessa versão modernizada, os setores mais vulneráveis, econômicos e sociais, estão incorporados na agregação da abordagem, por isso não são tratados do modo específico, indo a reboque com todos os demais setores. O desenvolvimentismo furtadiano, por sua vez, vem de abordagem estruturalista, que procura construir uma estrutura da economia para análise e proposição de políticas mais adequadas às especificidades de cada setor.

A versão furtadiana estaria ligada à social-democracia tradicional, não vendo no mercado algo intocável, fonte de virtudes e racionalidade. O mercado promoveria vários benefícios valiosos na sociedade, porém seria mais uma instituição, ao lado de outras a contribuir para melhorar a vida das pessoas. A abordagem furtadiana não interditaria qualquer política vertical, por exemplo, aquela negociada diretamente com agentes identificados como mais apropriados, apenas pelos seus maiores riscos de desvirtuamento. Ações decisivas para o desenvolvimento de várias nações, que se mantém muito comuns em países asiáticos, envolveram políticas verticais.

A escalada das desigualdades favoreceu a estudos como os do economista francês Thomas Piketty. Em seu prestigiado livro, O Capital no século XXI, ele demonstra, com fatos históricos e dados empíricos, a persistente geração de desigualdade de renda pela taxa de retorno da propriedade dos meios de produção se manter acima da taxa de crescimento da economia, em horizontes temporais longos. Não se conseguiu refutar, de modo objetivo, essa relação, fonte permanente de concentração de renda, riqueza, poder, oportunidades.

Muitos consideram essas consequências injustas, desumanas, o que levou a várias experiências de eliminação de sua causa, o comando privado dos recursos escassos, destacando-se a da URSS, China, Leste Europeu, Coreia do Norte, Cuba. Os resultados foram avaliados, predominantemente, como mais negativos que positivos, mas os comunistas são precisamente os que avaliam que valeu a pena essas experiências ou que com os devidos ajustes seria a melhor alternativa.

Contudo, muitos preferem que nada seja feito contra esses processos concentradores, sejam conservadores, por medo de perdas individuais, materiais, de pessoas ou de modo de vida; ou niilistas, por não se importar com desventuras dos outros. A legitimação seria por fatalismo – vontade de Deus ou como uma “lei da natureza” que sempre foi e será – ou por meritocracia – que beneficiaria os mais hábeis e dedicados, desprezando o fato de que o peso muito maior é das “dotações iniciais”, renda e influência dos pais e outros beneméritos.

Interessante é que essa conta, à primeira vista, parece não fechar. No Brasil, por exemplo, podemos assumir que, pelo menos, 80% são oprimidos e explorados, em maior ou menor grau, mas menos de 50% se insurgem contra essa situação. Entretanto, a conta fecha quando se considera que parte dos desfavorecidos apoiam a situação por medo de supostas perdas ou por não se motivar com redução de desigualdade. Preferem manter tudo como está e tentar mudar de lado, passando a ser opressor e explorador.

Enfim, os principais polos da disputa política atual, no país, seriam os sociais-democratas, que carregam propostas desenvolvimentistas, e os conservadores-niilistas. O projeto neoliberal resiste, em particular entre os mais envolvidos no mercado financeiro, onde privatizações e desregulamentações geram oportunidades de grandes “tacadas” e arbitragens. Os comunistas, humanistas motivados por justiça social, se alinham aos sociais-democratas como estratégia de avançar nessas pautas. Ainda assim, mantém objetivos inconciliáveis, oriundos de teorias que colocam a propriedade privada dos meios de produção como uma condição sempre incompatível com a justiça social, desprezando experiências altamente favoráveis, em vários países europeus.

Portanto, fica evidenciada a relevância da abordagem desenvolvimentista no estilo de Celso Furtado, pela maior facilidade em formular políticas específicas para setores estruturalmente heterogêneos. Também por não estar submetida a rígidos princípios de soberania do mercado, podendo dispensar-lhe o devido tratamento, como um dos meios de se alcançar maior justiça social e elevar a qualidade de vida de todos.

Fernando de Aquino tem doutorado em Economia pela UnB e é conselheiro coordenador da Comissão de Política Econômica do Cofecon

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