

Opinião
Apagão estatal
Os serviços públicos delegados à iniciativa privada continuam sob a responsabilidade do Estado, que tem o dever de fiscalizar a atuação das concessionárias


A cidade de São Paulo vivenciou, recentemente, um gravíssimo e incomum quadro de descontinuidade na prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica. Após eventos naturais que deveriam ser razoavelmente esperados e enfrentados de forma eficaz, a população paulistana ficou às escuras por longos e longos dias.
Tendo em vista que a prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica ocorre por meio de contrato de concessão de serviço público, realizaremos, nesta coluna, uma incursão no regime jurídico de delegação dos serviços públicos do Estado para a iniciativa privada. A primeira questão que se coloca é que a concessionária demorou muito para restabelecer o fornecimento de energia, colocando em xeque planos de contingências contra eventos extraordinários razoavelmente previsíveis e em face dos quais deveria haver uma imediata e efetiva reação.
Dada a relevância social dos serviços públicos concedidos, é dever dos órgãos estatais promover a fiscalização e, eventualmente, cominar sanções administrativas em face da concessionária. Com efeito, incumbe ao Poder Público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Quando o Estado resolve delegar a sua prestação através de contratos de concessão de serviço público, como ocorre com a distribuição de energia elétrica em São Paulo, a relação público-privada deve ser constantemente fiscalizada.
A concessão de serviço público é um instituto de Direto Administrativo, através do qual o Estado atribui a prestação de uma atividade de relevante interesse coletivo a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, mas nas condições fixadas unilateralmente pelo Poder Público. A titularidade da atividade delegada permanece nas mãos do Estado, ao qual compete fiscalizá-la intensamente.
A essencialidade do fornecimento de energia elétrica para a população é inquestionável. Não se trata de atividade econômica qualquer, em face da qual a iniciativa privada, com mero intuito lucrativo, pode sujeitá-la aos interesses e às regras de mercado. Trata-se de serviço público.
O professor Celso Antônio Bandeira de Mello, em seu Curso de Direito Administrativo (Ed. Malheiros), conceitua o serviço público como “toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral (…), que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo”.
Veja-se, portanto, que a noção de serviço público pressupõe o oferecimento de utilidades ou comodidades materiais singularmente desfrutáveis pelos cidadãos, as quais o Estado reputa como imprescindíveis às conveniências básicas da sociedade. Ademais, o serviço público está sujeito ao regime jurídico-administrativo, bem como aos seus princípios norteadores, tais como o da supremacia do interesse público, o da universalidade e o da continuidade.
O dever de continuidade na prestação do serviço público de energia elétrica leva-nos a questionar as razões pelas quais expressiva parcela da população ficou tanto tempo sem o serviço. É preciso que os órgãos de controle investiguem o cometimento de falta grave por parte da concessionária de serviço público, o que pode, inclusive, ensejar a declaração de caducidade do contrato administrativo.
Regular processo administrativo deve, assegurados os direitos à ampla defesa e contraditório, aferir se a concessionária incorreu em incúria na prestação do serviço delegado, bem como se fez prevalecer, na sua gestão, propósitos meramente lucrativos em detrimento das respostas tempestivas garantidoras da regularidade e da continuidade na distribuição de energia elétrica.
Mais especificamente, os órgãos de controle federais, estaduais e municipais, cada um nos limites de suas atribuições, devem investigar a atuação da concessionária de serviço público, bem como aferir se as obrigações contratuais estão sendo adequadamente cumpridas.
Não se pode admitir, em hipótese alguma, o colapso na prestação dos serviços públicos de distribuição de energia elétrica. Caso um modelo de gestão privado esteja colocando em risco o interesse público, é dever dos poderes públicos assumir a prestação direta do serviço ora concedido, sem prejuízo da responsabilização do particular contratado. •
Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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