Opinião

Ao buscar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, Brasil se indispõe com países latino-americanos

Que triste perceber que um governo progressista tem tanta dificuldade em colher o que até os olhos conseguem captar: sem integração, haverá desintegração

O presidente Lula durante a Cúpula do G20 na Índia. Foto: Ricardo Stuckert/PR
Apoie Siga-nos no

“Se a felicidade existe, eu só sou feliz enquanto me queimo, e, quando a pessoa se queima, não é feliz. A própria felicidade é dolorosa” – Vinícius de Moraes

Muitas vezes nos depreciamos. Talvez isso tenha até um ponto saudável, quando busca humildade.

Do ponto de vista coletivo isso também ocorre: no mosaico de imprecisões, aprendemos a divisar a verdade.

Um exemplo: quando os livros didáticos do governador de São Paulo dizem que a capital do estado tem praia, entrevemos o quanto um governante pode ser ignorante e por que é apoiado pelo genocida-miliciano-ladrão, prestes a ser encarcerado.

Isso também pode extravasar para o âmbito internacional: quando o chanceler da Suécia (país tido como civilizado) diz que o ingresso do país na Organização do Tratado do Atlântico Norte fará com que o Mar Báltico se transforme em um lago da Otan, percebemos como é enganosa a suposta superioridade civilizacional dos Nórdicos, sendo a Suécia o mais representativo do grupo.

Em outro diapasão, que importante o caminho que a diplomacia africana traça!

Recentemente, o Quênia ofereceu à Organização das Nações Unidas um contingente de policiais, para tentarem colocar fim ao inferno de insegurança que atinge o Haiti, que jamais será perdoado por ter-se libertado prematuramente do domínio branco.

Vale notar que o país caribenho não produz uma bala ou arma, vindo quase todas elas contrabandeadas dos Estados Unidos da América, cuja vizinhança deletéria tem determinado a situação caótica em que o Haiti sobrevive, após ter despachado os franceses da maneira mais vergonhosa no século XVIII, derrotando os generais e almirantes do próprio Napoleão Bonaparte.

Vale recordar que a maior parte da riqueza francesa veio da colônia do Haiti, a mais rica do então império colonial francês.

Por parte do Brasil, silêncio; como se o Haiti não estivesse situado no nosso próprio hemisfério e não fôssemos também um país caribenho.

Uma diplomacia “ingênua”, como a qualificou The Economist, que, embora publicação ruim, eurocêntrica, no caso, parece ter acertado.

Ao invés de construir uma política externa de baixo para cima, com participação popular, o Itamaraty, na recente reunião do G20 (as 20 maiores economias do mundo), ocorrida em Nova Délhi, se lançou na reforma da ONU, sem buscar credenciais continentais, por exemplo, tentando contribuir para as crises no Haiti ou na Nicarágua.

Dessa firma, vai-se distanciando, cada vez mais, do objetivo, correndo o risco da irrelevância.

Com efeito, na Índia, o Brasil anunciou a reforma da ONU como uma das prioridades da presidência brasileira (de um ano), havendo os EUA manifestado a concordância com a ampliação do Conselho de Segurança, mediante o ingresso… da Índia.

Essa prioridade brasileira pode comprometer a presidência do grupo, uma vez que obviamente muito pouco se pode obter sobre tema tão complexo, em um ano…

Trata-se de verdadeiro equívoco em termos de discernimento: no momento em que a Terra dá sinais dramáticos de que o fim da experiência humana pode estar mais perto do que nunca, haja vista a emergência climática que, por exemplo, vive o Rio Grande do Sul, não um rincão distante e para nós desconhecido, caberia à presidência brasileira dar toda e ênfase à vital questão climática. Teria, certamente, todo o apoio das populações dos cinco continentes, que sofrem, como nunca, sob os efeitos devastadores do aquecimento global.

Pior, a questão da reforma arrasta-se há décadas…

Ao buscar para si uma cadeira no Conselho, o país se indispõe com os dois outros principais países latino-americanos, a Argentina e o México, que não cessam de repetir a negativa em apoiar a pretensão brasileira.

Ou seja, ao invés de cumprir o quanto estabelece o artigo 4º da Constituição Federal, que determina que a política externa brasileira esteja pautada pela busca da integração latino-americana, a chancelaria, de motu proprio, descumpre aquele preceito constitucional.

Por outro lado, também simbólico da recente reunião do G20, o ingresso da União Africana, como membro pleno do grupo, a exemplo da União Europeia, que, em agrupamento exclusivo de países, já sentava, opinava etc.

A diplomacia africana marca mais um tento. A latino-americana, menos um…

Aliás, para ficar na mera questão física, concreta e simbólica, vale notar que a UA tem sede em Adis Abeba que rivaliza com aquela da ONU, em Nova Iorque; a da capital etíope, construída e financiada pela China.

A Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, que seria a homóloga da UA na nossa região, sequer conta com um sobradinho geminado para chamar de seu…

Com base na comparação, inevitável relacionar o fato de sermos a região mais desigual do mundo com sermos a mais desintegrada. Algo tão evidente, mas ao mesmo tempo tão alheio ao Palácio dos Arcos… No caso, a transparente arquitetura de Niemeyer parece mesmo impermeável ao que é óbvio…

Em Abraçar a dúvida (editora Vozes), Anselm Grün recorda a propósito: “Paul Tilich lembra que a palavra em inglês para desespero é ‘dispair’: estar sem esperança.”

Outra interpretação possível para dispair é díspar, desemparceirado.

Que triste perceber que um governo progressista tem tanta dificuldade em colher o que até os olhos conseguem captar: sem integração, haverá desintegração; que o chefe de Estado, símbolo máximo dele, tem de estar onde o povo está sofrendo e que a imagem dele, por exemplo ajudando a descarregar um caminhão de víveres, pode ser tão importante quanto os 741 milhões liberados para a ajuda aos flagelados; que instituições tão desgastadas por escândalos de todo gênero, como as Forças Armadas brasileiras, sairão com a imagem reabilitada após a tragédia no Vale do Taquari, porque para lá foram mandadas, não contando a Secretária Nacional de Defesa Civil com meios de resgate, só havendo os… militares.

Cabe reflexão.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo