Opinião

Antissistema e pró-sistema: quem é quem na política brasileira

Não faz o menor sentido Bolsonaro e seus asseclas colocarem-se do lado antissistema. Muito pelo contrário.

Protesto contra Bolsonaro (Foto: ABr)
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Nas eleições do ano passado, com a ascensão de Bolsonaro e seu grupo, muito se falou da estratégia de comunicação dele – aliás, exitosa – que colocou sua candidatura como se fosse Antissistema, deixando a pecha de candidatos do Sistema para Lula depois Haddad, Alckmin e outros postulantes de agremiações mais fortes que já exerceram o governo ou parte dele. Nada mais falso, como, aliás, é quase tudo falso nesse grupo que assumiu o governo e seus apoiadores.

Pois bem, pretendo aqui precisar melhor o sentido dessas duas palavras com o objetivo de recolocar as coisas nos seus devidos lugares a partir de uma perspectiva histórica. Para isso me inspirei num capítulo do livro do Pablo Iglesias, professor, escritor e líder do Podemos na Espanha, que discute esse assunto à luz das lutas que travam em seu país.

Até há pouco tempo atrás, por ocasião das grandes manifestações de rua e ocupações de praças no nosso país e no mundo, a palavra antissistema tinha um significado até negativo nos meios de comunicação. Era relacionada, por exemplo, aos holligans que provocavam desordens na Europa ou aos blackblocks aqui no Brasil. Mas ainda se usa o termo para atacar os movimentos sociais como o MST e para criminalizar o protesto social.

Iglesias cita o sociólogo Immanuel Wallerstein que escreveu que existiram dois grandes movimentos antissistema na história recente da humanidade. Os primeiros, que se opunham à organização econômica do sistema, eram os movimentos operários; os segundos, que se opunham à organização política internacional através de um sistema de Estados, eram os movimentos de libertação nacional.

Se fizermos uma avaliação da contribuição desses movimentos nos últimos 200 anos, veremos que qualquer democracia assumiria que os direitos civis e políticos, o direito à associação, ao sufrágio universal, o direito de livre sindicalização e o direito de reunião, a jornada de trabalho de 8 horas, o direito a um sistema de saúde público, o direito a um sistema público de educação, que possam existir organizações sindicais ou que haja negociação coletiva, são frutos da ação na história dos movimentos antissistema. As características que hoje toda a gente assume como próprias da democracia são frutos, precisamente, dos movimentos antissistema.

Wallerstein sintetiza alguns dos grandes debates nos movimentos antissistema. Um deles foi, no seio do movimento operário, o que fazer com o Estado. Os anarquistas diziam “temos de destruir o Estado” e os marxistas diziam “temos de conquistar o poder do Estado”. Na maior parte dos países com um grande movimento operário organizado impôs-se o critério dos marxistas. Depois, houve outro debate: como conquistamos o poder do Estado? Os marxistas reformistas diziam que com a ampliação do sufrágio poderiam chegar ao poder do Estado e através de reformas no marco da legalidade burguesa poderiam conseguir avanços que os levassem à superação do Capitalismo; de outro lado, os marxistas insurrecionais declaravam que isso era impossível, pois a burguesia nunca deixaria que lhe arrebatassem o poder político por vias legais e, portanto, o Estado só podia ser conquistado por vias violentas.

Em geral, analisa Wallerstein, na Europa, os que obtiveram mais êxito foram os socialistas reformistas, com exceção da Rússia, onde os Bolcheviques tomaram o controle do partido e levaram a cabo um dos mais importantes processos políticos do século XX: a Revolução Russa, a tal revolução contra O Capital de Marx, como dizia Antônio Gramsci, que haveria de inaugurar o “breve” século XX, como o definiu o historiador Eric Hobsbawn.

Aconteceram debates semelhantes a este nos movimentos de libertação nacional. Por exemplo, entre o nacionalismo cultural e o nacionalismo político a propósito da imprescindibilidade de um Estado para defender e promover uma cultura. Logicamente, impuseram-se os nacionalistas políticos, pois sabiam que para defender e desenvolver uma língua ou qualquer outra característica cultural necessária para construir os seus elementos de agregação indenitária, precisava-se do Estado.

Também debateram a possibilidade de se obter a independência das colônias por vias pacíficas ou pela violência. Neste caso, por força do confronto com a realidade, impuseram-se, em quase todos os lados, os que defendiam a via violenta. Os processos de descolonização que conhecemos no século XIX aqui na América Latina e nos restantes países do mundo no século XX, foram processos que representaram o desafio armado não só ao poder militar das metrópoles, como também à estrutura política do sistema mundial, aí incluído o fim da escravidão.

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Pablo Iglesias conclui que ,ao contrário dos que usam o termo antissistema como um insulto, quase todos os avanços políticos num sentido progressista da humanidade, devem-se em boa medida à ação dos movimentos antissistema.

Paradoxalmente, o que se torna irrepresentável à luz de toda concepção democrática, eis os pró-sistema da história: os defensores da escravatura, do sufrágio restrito – sem os pobres e mulheres, por exemplo – do racismo, do trabalho infantil, contrários aos direitos sociais, os endinheirados defensores do fascismo, do imperialismo etc, etc, etc.

Os pró-sistema de hoje são os defensores de uma institucionalidade internacional sem controles democráticos, onde instituições como FMI, Banco Mundial e a Troika na Europa mandam nos governos; são os partidários das privatizações dos bens públicos e da nacionalização dos custos dos fracassos privados; são os defensores de um sistema que continua a fundamentar-se na proteção dos privilégios de uma minoria rica face aos direitos da maioria pobre.

Assim, à luz da reflexão do professor e político e do grande mestre sociólogo, não faz o menor sentido Bolsonaro e seus asseclas colocarem-se do lado antissistema. Muito pelo contrário, sua agenda e propostas são totalmente pró-sistema. Certamente seus marqueteiros fizeram isso para confundir e ganhar apoio nas classes populares.

Ao contrário, Lula/Haddad, Boulos, Manuela Dávila, estes sim os candidatos antissistema, herdeiros de lideranças de grandes movimentos também antissistema como Tiradentes, Zumbi dos Palmares, Luís Carlos Prestes, Francisca Senhorinha da Motta Diniz e Chico Mendes, entre outros que foram perseguidos, banidos e mesmo assassinados pelo Sistema.

Aliás, até fico imaginando o Tiradentes, onde estiver, puto da vida ao saber que o Flávio, filho do Bolsonaro quando era deputado estadual, homenageou o chefe da milícia do RJ e principal suspeito da execução da Marielle Franco, com a “Medalha Tiradentes”. Nada mais inapropriado.

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