Sidarta Ribeiro

Professor titular de neurociência, um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN

Opinião

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Antessala do horror

Não sairemos desta situação criada pelo bolsonarismo com mais violência, mas com inteligência

Marcelo Arruda e o seu assassino bolsonarista
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É desesperador perceber as linhas de convergência da tragédia em curso, que chega ao absurdo de vermos o presidente da República desacreditando nosso sistema democrático perante embaixadores estrangeiros, enquanto o ministro da Defesa repetidamente constrange o Tribunal Superior Eleitoral para melar as eleições de outubro.

Este pesadelo institucional se completa com a ameaça cada vez mais explícita de ruptura de nossa frágil e combalida convivência pacífica. Enquanto as Forças Armadas rosnam com os dentes à mostra, as polícias Militar, Rodoviária e Civil tocam o terror. A Polícia Militar do Rio de Janeiro, por exemplo, transformou em hábito sádico a chacina de jovens negros nas favelas, mostrando uma sanha crescente de massacre do povo mais vulnerável.

Salta aos olhos a pulsão de morte insuflada pelo regime de exceção instaurado no Brasil. Um pai de família, policial penal bolsonarista, invade armado a festa de aniversário de outro pai de família, Marcelo Arruda, guarda municipal petista, e o executa diante da esposa e dos quatro filhos, um deles recém-nascido, aos gritos de “Aqui é Bolsonaro”. Antes de morrer, a vítima consegue alvejar o agressor, que recebeu alta da UTI no hospital em que está internado. Os dois homens nem sequer se conheciam, foi evidentemente um crime de ódio político, mas no indiciamento do agressor a Polícia Civil concluiu que não houve motivação política.

A atmosfera de matança autorizada pela farda vai contaminando cada vez mais brasileiros. Cinco dias depois do assassinato de Marcelo Arruda, outro pai de família, policial militar bolsonarista, inconformado com a separação da esposa, executa a tiros a mulher e os três filhos do casal. Além do núcleo familiar, matou a própria mãe, o irmão e dois transeuntes desconhecidos. A última bala guardou para si mesmo. Crime bárbaro, visando aos familiares, misturado a ódio difuso contra a sociedade.

Estes dois casos recentes ilustram a perda completa de limites do fascismo à brasileira, engajado numa escalada de violência que planeja nos levar a um banho de sangue generalizado durante o período eleitoral. Ambos os crimes explicitam a convicção de que o inconformismo com decisões alheias justifica sacar uma arma e disparar o gatilho.

O raciocínio é simples: “Se as coisas não saem como eu quero, prendo, mato e arrebento”. Conforme anunciado há várias décadas pelo próprio líder da mitologia bolsonarista, o desejo explícito é “matar 30 mil”. Se depender da vontade dele e de seus asseclas, rumamos céleres para uma guerra civil em que apenas um dos lados está armado.

Nós, que estamos do lado desarmado, temos pela frente um desafio monumental. Como desarmar essa bomba-relógio prestes a explodir em pleno bicentenário da Independência? Como vencer uma luta tão assimétrica? O que pode nos salvar dessa armadilha letal?

Entre 1965 e 1966, forças militares e paramilitares da Indonésia aniquilaram uma multidão estimada entre 500 mil e 1 milhão de vítimas, caçadas entre as minorias étnicas e aqueles acusados de comunismo ou ateísmo. Para compreender a escala gigantesca desse genocídio, vale a pena ler o recém-lançado livro O Método Jacarta: a Cruzada Anticomunista e o Programa de Assassinatos em Massa Que Moldou o Nosso Mundo (Vincent Bevins, Autonomia Literária, 2022).

Entre 1933 e 1939, na Alemanha, o Estado e as forças paramilitares aniquilaram multidões com a justificativa de serem comunistas, anarquistas, usuários de drogas, homossexuais, ciganos, judeus, intelectuais ou artistas. Prisão, tortura e morte para os opositores do regime foram o aperitivo para o festim diabólico da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, que exterminou 6 milhões de judeus.

Como será descrito pelos historiadores o ano de 2022 em nosso país? Os contundentes ataques ao sistema eleitoral, o terror psicológico e as técnicas militares de guerra híbrida buscam deixar nossa sociedade em choque permanente. Estaremos na antessala do horror sem limites?

Não sairemos inteiros de um embate em que a violência seja adotada por ambos os lados. De algum modo que ninguém enxerga ainda, teremos de vencer a luta sem recorrer aos métodos do lado de lá. Não sairemos desta situação com mais violência, mas sim com inteligência. Precisaremos da inspiração e da sabedoria do grande Morihei Ueshiba, que na primeira metade do século XX formulou uma arte marcial estritamente defensiva descrita como “o caminho da unificação com a energia da vida”. O aikidô baseia-se no uso da força do adversário para derrotá-lo, um caminho de harmonia eficaz em que o defensor maneja o ódio contra o próprio ódio. Contra a morte só o que pode nos salvar é a vida. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Antessala do horror”

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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