Liszt Vieira

Professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond)

Opinião

Anistiar militares terroristas é o caminho mais curto para novos atentados

O projeto de extrema direita de implantar a ditadura ou pelo menos assegurar a tutela militar entrou em crise após o 8 de janeiro

Aliados? A simbiose entre extremistas e militares prova a tese de Pimentel, as Forças Armadas foram “bolsonarizadas” - Imagem: Ton Molina/AFP
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Durante longos anos, a América Latina conheceu muitas ditaduras militares. Matar presos políticos era comum. A ditadura de Pinochet no Chile matou milhares de pessoas. Uma das mais sangrentas foi ditadura militar argentina. Lá, a repressão política não obedecia a um governo central, como no Brasil. Havia senhores de guerra nas diversas províncias: os comandantes militares regionais tinham plena autonomia para torturar e matar quem bem entendessem. E depois, em aviões militares ou fretados, despejavam os cadáveres em alto mar, nos chamados “voos da morte”. Há filmes argentinos denunciando isso, entre eles o filme Kóblic, com Ricardo Darín.

No Chile, sabemos agora pela imprensa que o poeta Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura, foi envenenado e não morreu de câncer de próstata, como havia sido divulgado pela ditadura fascista de Pinochet pouco após o golpe militar de 1973. Rodrigo Reyes, sobrinho do poeta e advogado, disse à AFP que o laudo aprovado agora por um painel internacional de cientistas confirma a tese do assassinato do escritor. “Está claro que injetaram em Pablo Neruda a bactéria lostridium botulinum, verdadeira arma biológica, e poucas horas depois ele morreu”. Uma juíza chilena negou essa possibilidade, mas entre uma comissão internacional de cientistas e um juiz, pouca ou nenhuma dúvida subsiste. A experiência brasileira mostra de que é capaz um juiz de direita.

No Brasil, chegou a haver uma tentativa de repressão política autônoma em relação ao governo federal com os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog e, pouco depois, do operário Manoel Fiel Filho. Herzog foi morto em 25 de outubro de 1975, após ser preso e torturado por agentes do DOI-Codi de São Paulo. A versão inicial foi suicídio. Entre os denunciados estão Audir Santos Maciel, comandante responsável pelo DOI-CODI, e José Barros Paes, chefe do comando da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército.

O DOI-Codi de São Paulo – na época conhecido como Operação Bandeirantes, OBAN – repete a farsa de suicídio três meses depois da morte de Herzog ao matar na prisão o operário Manoel Fiel Filho. Da mesma forma que haviam feito com Vladimir Herzog, os militares divulgam a versão de suicídio da vítima, desta vez “com as próprias meias”. Assim como ele, muitos brasileiros que lutaram pela democracia contra a ditadura militar foram assassinados na prisão. A lista é longa. Citaremos aqui apenas alguns: Rubem Paiva, Mario Alves, Eduardo Leite, o Bacuri, e muitos outros.

Desafiado em sua autoridade pela repetição do caso Herzog, o general Ernesto Geisel, então Presidente da República, exonerou dois dias depois o comandante do 2° Exército, general Ednardo D’Ávila Mello. Geisel retomou o controle da repressão e mandou recado aos subordinados que pode ser resumido na seguinte frase: torturar pode, matar não, a não ser com autorização expressa do governo federal. Esse pode ter sido o caso do assassinato do militante Onofre Pinto, em 1974 em Medianeira, Paraná, até hoje cercado de mistério.

Mas, diversas vezes, ocorreram tentativas isoladas de terrorismo por parte de militares. O caso mais famoso foi o atentado frustrado de explosão em 1981 no Riocentro, onde se encontravam milhares de pessoas vendo um show em comemoração ao dia do trabalho. Por erro técnico de manipulação, a bomba explodiu e matou o sargento Guilherme Pereira de Rosário e feriu o capitão Wilson Dias Machado. Ninguém foi punido, nem o capitão nem os mandantes. Entre os suspeitos, foram citados os generais Newton Cruz e Otavio Aguiar de Medeiros. O coronel Freddie Perdigão, um dos mais notórios torturadores do período, foi apontado como mentor do crime O inquérito militar inventou a farsa de um atentado praticado por “subversivos” e o sargento foi enterrado com honras militares, como herói de guerra. O capitão Wilson, hoje coronel, passou a exercer discretas funções administrativas internas do Exército. Alguns anos atrás, foi visto várias vezes jogando vôlei na praia de Ipanema.

Ainda antes do AI-5, em junho de 1968, o capitão Sergio Ribeiro de Carvalho, conhecido como Sergio Macaco, integrante do esquadrão paraquedista de resgate Para-Sar, se recusou a cumprir ordens do brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, que tinha o plano de explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, dinamitar uma represa e jogar 40 líderes políticos no oceano para depois botar a culpa na esquerda. O capitão Sergio Macaco foi punido pelo AI-5 e afastado da carreira. Em 1992, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que ele devia ser promovido a brigadeiro, posto que teria alcançado se tivesse permanecido na Aeronáutica, mas morreu sem ver a sentença cumprida.

Na História do Brasil Colônia, temos um exemplo clássico de preso político assassinado na prisão. Em 1789, um dos principais líderes da Inconfidência Mineira, o advogado e poeta Cláudio Manuel da Costa, foi encontrado morto na prisão. Segundo a versão oficial, ele havia se suicidado. Cerca de 20 anos mais tarde, surgiu em Vila Rica (hoje Ouro Preto) alguém afirmando ter sido um dos médicos que examinaram o corpo. Ele declarou que o laudo original, de assassinato, havia sido mudado para suicídio a pedido do Governador, o visconde de Barbacena. Essa informação, ignorada durante muito tempo, só recentemente passou a ser admitida pelos historiadores.

Estou relembrando esses fatos para mostrar que militares apoiando ações e atentados terroristas não constituem nenhuma novidade. Os militares brasileiros ainda estão impregnados da cultura da guerra fria e não vivem sem um “inimigo”, externo ou interno, real ou imaginário. Assim, não é surpresa ver militares da ativa dando apoio direto aos vândalos terroristas que invadiram e destruíram as sedes dos 3 Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro passado. E que ninguém se surpreenda ao ver as tentativas de conciliação da turma do “deixa disso” para evitar punições. A conciliação é um traço marcante das elites liberais quando não é cabível um golpe militar de direita para implantar uma ditadura que vai assegurar seus interesses e privilégios.

Estava  em discussão se os militares que apoiaram diretamente o vandalismo bolsonarista de 8 de janeiro serão julgados pelo Tribunal Militar ou pelo Supremo Tribunal Federal. [O ministro Alexandre de Moraes decidiu que cabe ao STF]. O primeiro caso é uma excrescência da ditadura, pois um tribunal militar só deveria julgar crimes militares propriamente ditos, e não um crime comum cometido por militar, como ocorre hoje. Nesse caso, a pena, se existir, será branda. Já o segundo caso é uma incógnita. Prevalece no Judiciário, tradicionalmente, uma atitude conservadora de conciliação. Mas, como o próprio STF foi invadido e destruído, é possível que a maioria venha a optar por punições aos agentes militares que apoiaram diretamente a invasão e depredação dos prédios do Congresso, Palácio do Governo e do STF.

Uma coisa é certa. A tolerância e a anistia concedida no passado a militares golpistas serviram de estímulo para que outros militares viessem a cometer atentados contra a democracia. Anistiar militares terroristas em nome da “pacificação nacional” é o caminho mais curto para novos atentados contra o Estado Democrático de Direito. As lições do passado não devem ser esquecidas. Se, para alguns, “O passado não abre a sua porta e não pode entender a nossa pena” (Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência), para outros já virou ditado a frase do filósofo espanhol George Santayana: “Quem não recorda o passado, está condenado a repeti-lo”.

O projeto de extrema direita de implantar a ditadura ou pelo menos assegurar a tutela militar entrou em crise. A tentativa desesperada de golpe em 8 de janeiro fracassou. O Exército ficou desmoralizado pelo apoio direto de militares graduados da ativa ao vandalismo terrorista. O governo, com o apoio de todas as forças democráticas do Legislativo e da sociedade civil, deve forçar o Exército e as Forças Armadas a retornarem ao papel que lhes cabe segundo a Constituição. Isso passa pela punição necessária dos PMs e militares que deram apoio direto à tentativa de golpe. Se essa oportunidade for perdida, breve teremos novamente militares ditando regras e pressionando políticos e ministros do STF. Nesse caso, a tutela militar continuará como uma espada de Dâmocles na cabeça da democracia. Mas hoje a correlação de forças nos favorece. A hora é de avançar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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