Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Ah… como era gostoso descascar batatas em Paris

Quando cheguei em Paris para passar uma longa década de tenebrosos invernos, fui obrigado a procurar emprego

Cardápio: lembranças da Paris de 1976
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Aprendi a cozinhar com a minha mãe à beira de um fogão Cosmopolita esmaltado. Cozinhar é modo de dizer. Fazia um arroz com feijão básico, um tutu, um angu, um chuchu. Sabia fritar bife, cozinhar milho verde, virar um omelete sem destruí-lo e dessalgar o bacalhau, especialidade que aprendi com o meu pai.

Quando cheguei em Paris para passar uma longa década de tenebrosos invernos, fui obrigado a procurar emprego, mesmo sem saber o que significava merci beaucoup. Cheguei mineiro e ressabiado ao número 43 da Rue do Borrégo, uma rua pacata onde funcionava um restaurante estudantil. A vaga era ali.

Fui com uma interprete que sabia o meu currículo de cor e salteado, nada compatível com o trabalho de ajudante de cozinheiro que ofereciam. Visitamos a cozinha e o meu entusiasmo pelo trampo era tanto, precisava tanto ganhar um punhado de francos para sobreviver que, acho, ficaram com dó e me contrataram.

Contrataram também é modo de dizer. Não tinha contrato, não tinha nada. O trato era trabalhar de segunda a sábado e todo último dia do mês receber um envelope com 600 francos franceses em dinheiro vivo, seis notas de 100. Descanso prolongado, só quando o restaurante fechasse para férias.

No primeiro dia de trabalho, lembro-me bem, fui apresentado ao chef, um francês da Borgonha, franzino, jeito de bravo, cara de bravo, pinta de bravo. Não fez nenhuma festa pela minha chegada, apenas me apresentou a máquina de descascar batatas, que achei um estouro. Era só lavar as batatas, jogar lá dentro e ligar o botão. Parecia uma máquina de lavar roupa, mas era de descascar batatas.

Aos poucos, de olho no chef, como vivia de olho na minha mãe, fui aprendendo o metier, um arroz criolo, uma salada niçoise, um poulet basquaise, des pommes à l’angalise, essas coisas que os franceses comem no dia a dia. Empenhado, num instantinho estava fazendo uma bela quiche lorraire, um boeuf bourguignon, uma blanquete de vitela e até um delicioso coq au vin.

Um dia, me chamaram no escritório do restaurante e eu fui todo animado, convencido, leonino, crente que seria promovido a quem sabe chef. Que nada! Fui promovido a caixa do restaurante, um cargo que me deu um salário de 200 francos franceses a mais e muita responsabilidade.

O trabalho era mais brando, minha função era ficar ali no caixa, mas, ao mesmo tempo um pouco mais tedioso que cozinhar aquelas alcachofras e preparar o molho vinagrete. Toda segunda-feira, eles me passavam o menu da semana e eu, num mimeógrafo, rodava alguns exemplares. Um, eu colava usando dupla face junto ao espelho que ficava logo na entrada do restaurante.

Hoje resolvi contar pra vocês essa história aqui porque, arrumando meu baú de preciosidades no final do ano passado, encontrei, dentro de um livro de poemas que escrevi chamado O Equilíbrio dos Loucos, um desses menus.

Naquela semana de março de 1976, na segunda-feira o prato do dia foi rôti de porc-choux fleur, na terça servimos bourguignon puré. Na quarta, steck petit-pois carrotes, quinta foi poulet frites, na sexta saumonette sauce armoricaine riz. No almoço de sábado, saussice Toulouse lentilles e no jantar, sauté de mouton flageolets verts.

Senti saudade e fome. Fome de comer um guisado de lebre com batatas ao forno, descascadas por mim naquela máquina que fazia rop rop rop nos tenebrosos invernos de Paris.

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