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Afronta à democracia

Não se pode permitir a glorificação de regimes totalitários e de exceção por meio de procedimentos falsamente democráticos, como a lei paulista que batizou um viaduto com o nome de Erasmo Dias

Afronta à democracia
Afronta à democracia
Fotos da invasão ordenada pelo Coronel Erasmo Dias à PUC (Foto: Reprodução/Portal PUC)
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Na condição de um dos advogados do PT, do PSOL, do PDT e do Centro Acadêmico 22 de Agosto, entidade representativa dos estudantes da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo, propusemos uma ação para que o Supremo Tribunal Federal declare inconstitucional a Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de junho de 2023. A referida lei batizou um viaduto da Rodovia Manílio Gobbi, em Paraguaçu Paulista, como “Deputado Erasmo Dias”, uma forma de homenagear um dos mais emblemáticos violadores de direitos fundamentais durante a ditadura (1964–1985).

É inadmissível a glorificação da exceção e do autoritarismo, em afronta aos princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana, democracia e cidadania, os quais asseguram o direito à memória histórica e à verdade e, ainda, o respeito à dignidade das vítimas. São esses, em resumo, os fundamentos que deduzimos perante o Supremo.

A Advocacia-Geral da União já se manifestou no sentido da inconstitucionalidade material da lei paulista, por implicar enaltecimento do autoritarismo. Do mesmo modo, a Procuradoria-Geral da República posicionou-se, no mérito, pela inconstitucionalidade da lei ao reconhecer que a designação de espaço público com nome de pessoa historicamente ligada à prática de atos antidemocráticos durante a ditadura ofende a gênese democrática da Constituição de 1988 e sua principiologia.

Com efeito, Erasmo Dias, consoante já externalizamos nesta coluna, capitaneou o aparelho repressivo para praticar, em larga escala e de forma brutal, assassinatos, prisões arbitrárias, torturas e toda a sorte de tratamentos cruéis e degradantes, inclusive contra mulheres e crianças. Assim considerando, é detrimentoso ao Estado Democrático de Direito constitucionalmente estabelecido adotar medidas legislativas que inoculam atos de legitimação totalitária na rotina e nos produtos democráticos. Além de negar as violações aos direitos fundamentais do período mais doloroso da nossa história recente, procura-se, com propósitos antidemocráticos, legitimar a exceção e degradar os valores do nosso pacto social.

A operacionalização do autoritarismo ocorre, na contemporaneidade, através de uma relação parasitária com a lógica democrática e que se firma através da aparência de respeito às instituições e à democracia. Ou seja, ao contrário da brusca interrupção do Estado Democrático de Direito para a instauração de um Estado de exceção, convivem um Estado Democrático de Direito subvertido e um Estado de exceção que, mesmo lastreado em técnica de governança permanente de exceção, não se assume como tal.

É através dos procedimentos pretensamente democráticos, tais como a tramitação de um Projeto de Lei, que a força majoritária ocasional, em violação à força contramajoritária da Constituição, procura mostrar as faces de um autoritarismo infiltrado na rotina e nos procedimentos legítimos.

Não por acaso a glorificação de regimes totalitários e de exceção, bem como a proteção jurídica da memória histórica, da verdade e da dignidade das vítimas, é uma grande preocupação nas democracias constitucionais contemporâneas, especialmente naquelas que sofreram, diretamente, as faces do totalitarismo no século XX.

A Segunda Guerra Mundial provocou uma revolução na forma como o homem ocidental enxerga o mundo. Dois grandes pilares – a democracia e a ciência – deixaram de garantir a tomada de decisões éticas. No plano jurídico, formulou-se, em resposta, um sistema pautado por constituições rígidas, inalteráveis por mera e ocasional força majoritária parlamentar. O objetivo dessas constituições rígidas do pós-Guerra, como afirma o jurista italiano Luigi Ferrajoli, foi constituir-se em semente antifascista.

A Constituição de 1988, espelhando a evolução do chamado constitucionalismo do pós-Guerra, representou uma semente contra a ditadura. A Constituição brasileira não é neutra. Ela repudia qualquer forma de autoritarismo e de ofensa aos direitos fundamentais. Diante de propósitos marcadamente sistêmicos que visam degradar nosso Estado Democrático de Direito, é preciso que o Supremo reafirme o compromisso irrenunciável da Constituição com os direitos fundamentais à memória histórica, à verdade e em respeito à dignidade das vítimas. É o que se espera do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.430. •

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Afronta à democracia’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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