Opinião
‘A vida não é como a gente quer. Ela é como ela é’
Sempre interpretei essa frase de modo restritivo, como se significasse que não podemos ter tudo o que desejamos. No entanto, o tempo sempre surpreende
“…o Senhor sabe retribuir e te dará sete vezes mais. Não tente suborná-lo com presentes, porque não os aceitará. Não favorece ninguém em prejuízo do pobre e atende à prece do oprimido. Não despreza a súplica do órfão, nem os gemidos da viúva. Ele não se afastará enquanto o Altíssimo não olhar, não fizer justiça aos justos e restabelecer a equidade.”
Da Bíblia, Primeiro Testamento, Livro de Ben Sira.
Meu pai costumava dizer: “A vida não é como a gente quer. Ela é como ela é.”
Sempre interpretei essa frase de modo restritivo, como se significasse que não podemos ter tudo o que desejamos.
No entanto, o tempo sempre surpreende.
Acho que essa é uma das belezas de estar vivo.
Sexagenário, descubro agora que aquela afirmação paterna tinha outro sentido: viver pode ir além das nossas expectativas — muitas vezes rotineiras, pequenas, rebaixadas —, porque calcadas em erros e frustrações do passado, os quais, na maioria das vezes, já não nos estimulam a buscar o que mais desejamos da vida.
Assim, perdemos o sabor de viver.
Vale notar que, em português, “saber” e “sabor” diferem apenas por uma letra — uma simples vogal.
O mesmo ocorre em italiano, com sapere e sapore.
Pois o saber deve ser gostoso, prazeroso, ter significado e sentido.
Nesse sentido, existe algo que nos tire tanto o gosto de viver quanto o medo?
Entretanto, facilmente nos rendemos a ele, temendo ousar, ler os sinais da vida (que são literalmente vitais), experimentar o novo até a vertigem, que, por nos tirar dos eixos do costumeiro, lança-nos em solo, ar e luz novos.
Refletindo sobre o vetusto: existe algo mais antiquado do que a Câmara Federal brasileira?
Como pode um órgão de tamanha importância contar com uma Comissão de Ética que aprova um deputado ausente do país há oito meses, com salário superior a quarenta mil reais — e ainda por cima conspirando contra a própria nação?
O desprezo dele pela instituição foi tal que não indicou advogado, não apresentou defesa e sequer aceitou o convite para participar por videoconferência.
Idem para a deputada criminosa, presa, mas ainda recebendo, como se comparecendo estivesse.
Que nível de desrespeito com o Brasil esses senhores pretendem ainda atingir?
Assim, são contra a escala 6×1, mas, para os seus, deve valer aquela 0×7?
A pergunta que não quer calar: já ouviram falar em Luís XVI e Maria Antonieta? Não temem a roda da história?
Voltando às maravilhas da vida, cabe refletir com Pier Paolo Pasolini como o fim da hegemonia cristã e agrária na cultura e na política italiana levaria ao individualismo, sob a égide do capitalismo. Ele acertou em cheio — haja vista o reinado de Berlusconi, que abriu as portas para o governo neofascista de Giorgia Meloni.
Olhando as hortênsias prestes a florir na Serra Gaúcha, é impossível não lembrar do cineasta e poeta italiano, verdadeiro profeta dos males políticos que voltariam a assombrar o mundo nesta década do século XXI, terrível cópia da mesma década do século XX.
Por que as hortênsias?
Porque são botões tão pequenos, verdes, de um arbusto igualmente verde, que explodem em cores magníficas, exuberantes e inesperadas — metáfora da própria vida.
Em Porto Alegre, por outro lado, o prefeito pouco afeito ao trabalho privatizou o departamento de águas e esgotos.
Competem ele e o desgovernador para ver quem privatiza mais e, dessa forma, obviamente, trabalha menos.
Os respectivos salários, porém, não são reduzidos — como seria de se esperar, já que não mais administram a parcela principal do que foram eleitos para fazer.
A Irlanda, por sua vez, elegeu na semana passada uma presidenta de esquerda, sufragada com mais de 60% dos votos. Um acaso? Não parece. Dos 27 países da União Europeia, a Irlanda apresenta o maior nível de instrução. A Itália só fica à frente da Romênia…
Também no que diz respeito ao casamento de pessoas do mesmo sexo: a opinião pública irlandesa é 86% favorável — superada apenas por Holanda e Suécia (94%), Espanha e Dinamarca (93%).
Charles Sainte-Beuve, crítico literário francês, recordava:
“Há um ponto elevado em que a arte, a natureza e a moral se confundem e são simplesmente uma só coisa.”
Na Hora da Estrela (Editora Rocco), Clarice Lispector refere-se à protagonista Macabéa:
“Ela sabia o que era o desejo — embora não soubesse que sabia.”
Não somos todos um pouco (ou muito) Macabéa?
Nossos desejos, na verdade (e talvez na maioria das vezes), não estão aquém das infinitas possibilidades da felicidade?
Seguindo com Clarice e Macabéa:
“Por falar em novidades, a moça um dia viu num botequim um homem tão, tão, tão bonito que — que queria tê-lo em casa. Deveria ser como — como ter uma grande esmeralda-esmeralda-esmeralda num estojo aberto. Intocável. Pela aliança viu que era casado. Como casar com-com-com um ser que era para-para-para ser visto, gaguejava ela no seu pensamento. Morreria de vergonha de comer na frente dele porque era bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa.”
Com a poesia de Clarice e Macabéa, busquemos — também com Vinicius de Moraes e o Papa Francisco — os encontros desta vida, embora ainda haja tantos desencontros.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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