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Bem pequeno, ele bebeu uns goles de água sanitária que estava numa garrafa de guaraná, deixada no chão, perto da porta do banheiro, enquanto a empregada lavava o boxe. Praticamente perdeu os dentes de leite e foi salvo pela mãe que correu com ele para o pronto socorro. Bebeu uns dois litros de leite, o pobre coitado.
Menino feito, criava passarinhos, pombos, porquinhos-da-índia e coelhos. Cuidava com esmero da bicharada. Passava o sábado limpando tudo com muita água, sabão e muita creolina.
Odiava matemática e as notas no boletim sempre vinham em vermelho. Se salvava no fim do ano quando o pai assumia as aulas particulares com um livro do Trajano ao lado. Passava raspando todo ano.
Gostava de jogar bola no campinho de terra do bairro e sempre no gol. Ficou traumatizado depois de levar um golaço de Pimenta aos vinte segundos de jogo. Nunca mais vestiu aquelas luvas e aquelas joelheiras, paramento de todo goleiro.
Aos domingos costumava ir ao Mercado Central com o pai. Enquanto ele assistia a missa, ele ficava observando aqueles pombos em gaiolas minúsculas, pombos brancos que ele sonhava um dia ter um casal.
Comia de tudo. Até mesmo miolo de boi à milanesa que a mãe fazia. Angu, todos os dias. Era louco com a bacalhoada ao forno que o pai preparava na Páscoa, e um creme de aspargos que fazia nos dias de festa.
Nunca foi para a escola no dia do seu aniversário. Era o presente que a mãe lhe dava todos os anos. Fugia do mico do parabéns pra você e dos cumprimentos que o deixava rubro de vergonha.
Aos onze anos mudou-se pra Brasília e, encantado com os projetos de Lucio Costa e as curvas de Niemeyer, chegou a pensar em fazer Arquitetura. Desistiu quando soube que era preciso ser bom em matemática.
Voltou pra sua terra natal uns anos depois e foi na pequena cidade onde nasceu o seu pai, que encontrou o seu primeiro amor. Deu a ela de presente o álbum branco dos Beatles, mas o namoro durou pouco. Passou muito tempo imaginando Teresa ouvindo Sexy Sade.
Na juventude, deixou o cabelo crescer, abriu a boca da calça Lee, manchou as camisetas com água sanitária, calçou tamanco nos pés.
No curso científico, era ruim em química e física. Na véspera de provas, apareciam pelo seu corpo furúnculos e mais furúnculos. Isso é nervoso, dizia sua mãe ao médico que receitava curativos com basilicão quente.
Viajou de carona pra Salvador, pra Brasília, pra Cataguases, pra Ouro Preto, mas nunca conseguiu chegar a Conceição do Mato Dentro, que era o seu sonho.
Nunca gostou de nadar, nunca gostou de dançar. O primeiro emprego foi no Laboratório de Defesa Vegetal do Ministério da Agricultura. Se apaixonou pelas plantas e pensou em ser engenheiro agrônomo.
Poucos meses antes de fazer o vestibular para Medicina, ganhou um concurso de contos no Sul do país e mudou de ideia.
Foi orador da turma do ginásio no Colégio Tito Novais, e no científico, onde estudou Carlos Drummond de Andrade. Fez vestibular para Jornalismo na UFMG e passou em sétimo lugar. Antes de completar um mês na Faculdade lançou um jornal chamado Flã, que durou dois números e entrou para a história.
Um dia, comprou um carrinho de frutas e foi vender maçãs, uvas, peras, bananas e abacaxi na praça mais chique da cidade. O carrinho funcionava 24 horas e foi assim que juntou dinheiro para voar para Paris, já que estava de saco cheio da ditadura militar.
Acreditava que isto aqui estava um inferno e Paris era uma festa.
[continua na semana que vem]
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