

Opinião
A vanguarda do atraso
A ação contra as políticas afirmativas no Exame Nacional de Residências mostra como a medicina resiste a abrir as portas a grupos historicamente excluídos


“O ano é 2024, mas parece que estamos em 1800.” A frase ecoa um desconforto crescente com a persistência de certas mentalidades. É o caso de mais uma polêmica protagonizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que ofereceu ação civil pública contra a adoção de políticas afirmativas no Exame Nacional de Residências (Enare), promovido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), estatal vinculada ao MEC.
Em notas divulgadas pela entidade e pela Associação Médica Brasileira (AMB), a proposta de reservar vagas para negros, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiências, prevista na legislação brasileira, é acusada de representar uma “discriminação reversa” que colocaria em risco a meritocracia na seleção de residentes.
O Enare é um exame nacional destinado a democratizar o acesso à residência. Este ano, 89 mil candidatos disputam 4.854 vagas de residência médica e 3.789 vagas de residência multiprofissional, em 163 instituições do País.
Ao adotar políticas afirmativas, o edital busca atuar para reparar desigualdades históricas e oferecer oportunidades a grupos sistematicamente excluídos de espaços de prestígio e acesso a recursos. A reação de setores médicos expõe a resistência de um sistema que reluta em abrir suas portas a uma parcela da população marginalizada desde a abolição da escravatura.
No centro do debate está o argumento da “meritocracia”, que, no Brasil, muitas vezes assume uma forma seletiva. Para uma elite, composta majoritariamente de brancos, as oportunidades surgem como “mérito próprio”. Para negros, quilombolas, indígenas e PCDs essas mesmas oportunidades são vistas como “privilégios injustos”. Essa concepção ignora a realidade de um país onde a desigualdade racial é estrutural.
Como canta Lazzo Matumbi na música 14 de Maio, lembrando o impacto limitado da “abolição” da escravatura, O chicote foi trocado pela caneta/ mas ainda somos vistos como ameaça em nossos próprios espaços. O Enare surge como uma tentativa de reverter um ciclo secular de opressão, ao qual a medicina – um dos setores mais elitizados no País – insiste em permanecer alheia. Essa resistência, disfarçada de defesa de mérito, só demonstra o quanto ainda se teme que novos protagonistas ocupem esses espaços.
O racismo vai muito além de atitudes individuais, traduzindo-se em padrões e práticas que mantêm privilégios históricos. A oposição às cotas é um exemplo de como esse racismo institucional opera nas “objeções técnicas” que justificam a exclusão. No Brasil, onde mais da metade da população se autodeclara negra ou parda, é inaceitável que a elite da medicina ainda resista a abrir suas portas a esses grupos.
Dados do IBGE mostram que negros e pardos representam 56% da população, mas seguem sub-representados em profissões de alta remuneração e prestígio, como a medicina. Ao restringir o acesso à especialização médica, essas instituições perpetuam uma segregação de oportunidades que se estende por gerações.
A retórica da meritocracia e da “qualidade” revela-se uma narrativa seletiva que sustenta o status quo, exclui minorias e preserva privilégios. A suposta neutralidade serve de escudo para práticas excludentes, que resistem à inovação social sob a desculpa da “competência”. A verdadeira ameaça à qualidade da medicina não está na inclusão, mas no monopólio das oportunidades por uma minoria privilegiada, resistente à diversidade.
O Brasil de 2024 ainda assiste ao debate sobre inclusão e equidade como se fosse uma questão controversa, e não um direito básico. Enquanto o racismo institucional for defendido em nome da meritocracia, permaneceremos presos a um passado de desigualdades disfarçado por discursos de “imparcialidade técnica”. A verdadeira inovação não reside em métodos ou tecnologias avançadas, mas na coragem de abrir espaços e corrigir injustiças.
O Brasil de hoje é um reflexo do seu passado, mas há esperança de que, com políticas afirmativas e uma sociedade vigilante, possamos trilhar o caminho da justiça racial e da equidade. Afinal, se o chicote foi trocado pela caneta, que esta sirva para escrever uma nova história, onde a inclusão seja regra, não exceção. •
*Com Thiago Lopes Cardoso Campos, consultor jurídico da Ebserh, especialista em Direito Sanitário e militante do movimento negro.
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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