Maria Luiza Alencar

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Doutora em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pesquisadora de pós-doutorado em Direito, Estado e Sociedade na Universidade Federal de Santa Catarina. Professora titular aposentada da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Professora visitante titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Eliara Santana

Pesquisadora Associada do CLE/Unicamp e uma das criadoras do Observatório da Desinformação.

Opinião

A sinistra Damares e seu projeto de destruição

Na reta fina da campanha, era Damares quem estava ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, falando sobre os perigos do “demônio” e repetindo nos palcos e púlpitos que “o cão é articulado”

Créditos: Marcello Casal Jr /Agência Brasil
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A senadora eleita Damares Alves é advogada, professora e pastora, foi ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro (2018-2022) e, por muito tempo, foi um dos nomes mais bem avaliados no Ministério bolsonarista. A ex-ministra e senadora eleita se projetou como uma espécie de reserva e base moral do movimento bolsonarista de extrema-direita e do governo  de Jair Bolsonaro.

Ex-assessora do senador Magno Malta e consultora jurídica da Frente Evangélica, Damares assumiu com destreza o controle dessa pauta, trabalho que começou bem antes de responder por qualquer cargo, quando ela pregava sobre o tal  “kit gay”, Brasil afora, apresentando nas igrejas até slides denunciando a proposta dos governos petistas de “erotizarem” crianças ou transformá-las em gays. No governo Jair Bolsonaro, como ministra, ela fez, por longos quatro anos, um trabalho tão sinistro e aviltante quanto o seu perfil.

Sem aparecer muito na mídia, Damares impôs seu pensamento estreito, messiânico e moralista ao Ministério, detonando políticas públicas importantíssimas e enquadrando temas essenciais, sobretudo para as mulheres. A ex-ministra e atual senadora eleita articulava como ninguém e impunha sua marca macabra em outras pastas e em assuntos muito sérios, como no caso da menina de 10 anos, de uma cidade do interior do Espírito Santo, que foi estuprada, engravidou e teve o aborto autorizado depois de um longo percurso pelos tribunais, apenas para citar um exemplo.

Naquela ocasião, Damares mostrou enorme capacidade de articulação e de mobilização contra o aborto, enviando emissários ao Espirito Santo que estiveram em vários locais-chave, como Secretaria de Assistência Social do município, delegacia, Conselho Tutelar e até na casa da menina.

No Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares empreendeu megaoperação de destruição, como aponta o estudo “A Conta do Desmonte – Balanço Geral do Orçamento da União”, produzido pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Segundo dados da pesquisa, a execução financeira da promoção da igualdade racial diminuiu mais de oito vezes entre 2019 e 2021; os recursos gastos com ações voltadas para as mulheres caíram 46%, e a execução das verbas destinadas ao sistema socioeducativo encolheu 70% entre 2019 e 2021.

O projeto de destruição foi tão bem implementado que o MPF (Ministério Público Federal) chegou a abrir uma investigação cível sobre o trabalho de Damares no Ministério, em função da baixa execução orçamentária da pasta nos últimos anos.

Damares sempre seguiu uma pauta, um projeto, atuou e atua nesse sentido e sabe muito bem fazer o corpo a corpo. Ela está na base da consolidação da  pauta moral que imprimiu força ao bolsonarismo, o que lhe rendeu votos diretos, e desempenhou papel primordial na tentativa de reeleição de Jair Bolsonaro.

Na reta fina da campanha, era Damares quem estava ao lado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, falando sobre os perigos do “demônio” e repetindo nos palcos e púlpitos que “o cão é articulado”. Ao que parece, muito bem articulada é também a ex-ministra em seu projeto amplo de destruição.

Retrocesso civilizatório

Até o golpe que tirou a então presidenta Dilma Rousseff da presidência do Brasil, em 2016, o país vivia atmosfera democrática em representatividade e participação popular, com potência e ampliação de poderes feministas. A ruptura começou com Michel Temer, mas chegou ao cume com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Na agenda de mulheres, Bolsonaro conjugou as pautas da mulher, da família e dos direitos humanos sob o comando da pastora Damares em um novo ministério. No entanto, o que parecia avanço se configurou em gigantesco retrocesso – a nova pasta tratou de imprimir viés patriarcalista e autoritário a esse universo de temáticas sociais.

Tudo piorou a partir de março de 2020 com a pandemia de Covid-19, que afetou sobretudo as mulheres e as famílias. A pandemia aumentou exponencialmente os casos de abusos, violência doméstica e violência contra a mulher, potencializando também a questão do desemprego – segundo a PNAD Contínua, do IBGE, 8,5 milhões de mulheres tinham deixado a força de trabalho no último trimestre de 2020, na comparação com o mesmo período do ano anterior. Ao lado disso, o armamento de parte da população masculina afeita aos discursos de ódio pesou gravemente sobre as mulheres e sobre os direitos humanos.

Restou claro que a intenção de instituir uma pasta governamental específica deu-se no sentido maior de acionar um tipo de anacronismo que se impôs nos últimos quatro anos pelo viés da priorização conservadora para a vertente das famílias, no aspecto mais religioso e conservador do termo, com o consequente desmantelamento de políticas públicas consolidadas para maiorias minorizadas, como mulheres pretas e pobres, população LGBTQIA+ e outros grupos sociais e pessoas vulneráveis.

Não era pelas mulheres, tampouco pelos direitos humanos, mas apenas pelo controle conservador das famílias. De forma transversal, o incentivo ao armamento e a facilitação de aquisição de armas pelos civis acabou colocando, dentro de casa, o homem violento, agora legalmente armado.

Com Bolsonaro e Damares, o destaque foi dado para propagar uma agenda “moral” ultraconservadora, vinculando o suporte financeiro governamental a essa vertente. Na prática, o governo deixou de assegurar efetividade a direitos constitucionalmente garantidos, abandonando a intermediação de políticas públicas implementadoras desses direitos.

O pior é que as equipes governamentais aproximaram e uniformizaram suas pastas e órgãos para estimular a lógica arcaica dos costumes, em cujo interior não é admitida a luta das mulheres e de outros segmentos sociais, em face do caráter insubordinador dessas agendas.

Em pouco tempo, o Estado brasileiro passou de indutor de melhorias sociais, cumpridor das políticas constitucionais para mulheres, minorias e famílias, a vetor de missões reacionárias e conservadoras, muitas vezes ilegais. Colecionam-se casos de retrocessos capitaneados por Damares, desde a famosa frase que marcou a sua gestão – menino veste azul, e menina veste rosa.

A destruição calculada

Com Jair Bolsonaro e Damares Alves, surgiu um novo tipo de ativismo político às avessas, que se abastece de preconceitos, da negação das pautas identitárias e da supressão da própria política, rechaçando todas as conquistas no campo das políticas para as mulheres, para as famílias e para os direitos humanos.

O novo ministério passou a sistematicamente desconstruir e destruir políticas públicas relevantes na questão de gênero. Para se ter ideia, a Portaria 457/2021, publicada pelo ministério de Damares Alves, estabeleceu a revisão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e, para tanto, excluiu a histórica participação da sociedade civil no debate, revelando a estratégia de desmonte das conquistas.

Contrariando todas as conquistas, Damares trouxe de volta ao debate um tipo de antifeminismo religioso, acompanhado de valores patriarcais que remetem à Idade Média. A ministra da Mulher e da Família criticava, entre outras coisas, o que chama de “ideologia de gênero”; defendia processos de homeschooling e o programa “Escola sem Partido”; apresentou proposta de adoção do Estatuto do Nascituro, atribuindo personalidade jurídica ao feto ao tempo em que criminalizava o aborto, e sustentou a necessidade do que chamou de “governo religioso”, seja lá o que isso signifique.

No seu ministério, a condição da mulher passou a ser favorecida apenas no contexto da família, pelo vínculo patriarcal de filha e/ou esposa. O movimento feminista foi, assim, vítima de enorme retrocesso em relação à condição da mulher na sociedade brasileira e em relação aos direitos humanos duramente conquistados, fato que atingiu todos os movimentos sociais, em cenário que reclama nova rearticulação de forças em todos os níveis.

As alternativas têm sido aumentar as mobilizações na rua e tentar construir formas de resistência e de denúncia aos aumentos dos índices de violência contra a mulher e do empobrecimento, exponenciado no governo Bolsonaro.

Com Jair Bolsonaro e Damares Alves, até mesmo a velha legislação sobre o aborto foi posta em xeque. Pelo Código Penal, de 1940, é permitida a interrupção da gravidez nos casos de perigo à vida da gestante e gravidez resultante de estupro, havendo outro caso de permissão de abortamento decorrente de posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto aos fetos com anencefalia.

No governo que finalmente se despede, portarias e normas técnicas do Ministério da Saúde, em atuação conjunta com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, acarretaram conflitos constantes e dificuldades nos procedimentos legais, seja no sentido dos processos de atendimento, seja na restrição material de direitos, cabendo mencionar aqui que, de janeiro a setembro de 2020, a Câmara dos Deputados recebeu 22 projetos de lei sobre aborto, destes, 16 pretendem restringir ainda mais as mínimas possibilidades previstas em lei.

Outro exemplo da interferência nefasta de Damares em outras pastas é o programa “Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031”, lançado  em outubro de 2020 pelo Ministério da Economia. No eixo social da proposta, está o desafio “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, com a diretriz: “Promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes”.

Não se tem ali uma retórica vazia, mas a bússola ideológica integrada de Damares, no longo prazo, e espalhada em diversos setores para disseminar ações governamentais à sociedade brasileira, em fina articulação com a extrema-direita global e sua pauta ultraconservadora.

Em janeiro de 2022, pela Portaria nº 107, o MDH relançou o programa “Município Amigo da Família”, que objetivava incentivar políticas públicas de fortalecimento dos vínculos familiares e financiar instâncias municipais de implementação de políticas públicas familiares para o fortalecimento de vínculos conjugais.P

ara tanto, criou-se ainda a Cartilha sobre Políticas Públicas Familiares (2020) e, mediante edital, foram instituídos o Prêmio Boas Práticas em Políticas Familiares Municipais e o Selo Município Amigo da Família, mas apenas para as famílias tradicionalmente formadas, excluindo famílias monoparentais chefiadas por mulheres e famílias decorrentes de arranjos homoafetivos e polígamos (poliamor), que evidentemente não se enquadravam à proposta.

Note-se que, no contexto dos direitos das famílias, em claro contraponto aos direitos das mulheres, as políticas do governo Bolsonaro confrontam recomendações constitucionais diretas que deveriam se converter em políticas de Estado, visto decorrerem da racionalidade constitucional, obrigatórias para todos os governantes de plantão. No caso do governo atual que se finda, essas ações não intencionavam reduzir a pobreza e a desigualdade, em face, por exemplo, de parâmetros objetivos como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) ou medidores que se baseiem em raça, gênero ou classe social: ao contrário, tudo se baseava no projeto ideológico.

Diante desses exemplos, cabe compreender que as dimensões falsamente moralizantes, patriarcais e racistas fazem parte do projeto político de longo prazo da extrema-direita brasileira. Frases como “menino veste azul e menina veste rosa” não são bobagens ditas ao vento, mas um roteiro definidor das ações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em cujo interior a estratégia conservadora e antagônica aos direitos das mulheres foi se articulando e estruturando.

Por tudo isso, é bastante grande o desafio do novo governo Lula, que se inicia em 1º de janeiro de 2023. Há muito o que reconstruir. Nesse sentido, a instituição do Ministério da Mulher, como anunciado pelo novo presidente em coletiva no dia 2 de dezembro, é algo muito significativo e que deve ser amplamente celebrado. Além disso, a mobilização das mulheres na defesa de pautas que lhes são fundamentais é essencial e deve ser permanente.

Damares nunca mais.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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