Alexandre Arns Gonzales

Rachel Callai Bragatto

Jornalista, mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Foi visiting researcher na University of California – Los Angeles. Pesquisadora em estágio pós-doutoral no INCT/IDDC. Interessada em temas como democracia digital, participação política e cibercultura.

Opinião

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Não são as eleições que fazem uso das plataformas digitais, é o inverso

Imagem: iStockphoto
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Oprocesso eleitoral em tempos de mídias digitais, impulsionamento de conteúdos e campanhas que incluem dancinhas no TikTok e memes por todo lado é organizado conforme os interesses das plataformas digitais. Esse fenômeno expressa sob nova forma um problema antigo: a influência do poder econômico na disputa eleitoral.

O modelo de negócios dessas empresas é baseado na exploração dos dados pessoais e comportamentais dos usuários de seus serviços. Esses dados são extraídos a partir do registro digital de um conjunto de ações realizadas no âmbito dessas plataformas e fora delas. Atualmente, a principal fonte de receita é a venda de anúncios digitais, direcionados aos usuários a partir da organização e sistematização dos dados que os próprios usuários disponibilizam na rede, tanto os relacionados ao seu perfil (idade, sexo, localização geográfica) quanto os ligados aos seus interesses, sejam eles político-ideológicos, de consumo ou comportamentais.

Por depender do constante registro de dados dos usuários, faz parte da estratégia desse modelo de negócios a ampliação do tempo que as pessoas passam nas plataformas. A tática para captura da atenção abarca desde o desenvolvimento de funcionalidades específicas para esse fim, como o constante pulular de notificações até a política de moderação de produção e distribuição de conteúdo das plataformas. É justamente a política de moderação de conteúdo que define quais contas e conteúdos têm maior alcance de audiência e quais tipos de comportamento e conteúdo são permitidos no âmbito das plataformas. As tarefas de moderação são executadas, em parte, por algoritmos, o que consiste na automação de procedimentos padronizados de verificação de critérios, e, em parte, por humanos. Mas a divisão do trabalho entre as partes não é transparente.

A existência desse trabalho humano foi por um bom tempo ocultada pelo discurso de promoção dos serviços dessas plataformas. Somente em 2020 o Facebook reconheceu a existência desses trabalhadores, perto de 35 mil em todo o mundo. O argumento de que esse contingente está “espalhado ao redor do mundo” e que “cobre todos os fusos horários” parece um remendo de valorização de uma informação da empresa que, até há pouco tempo, nem sabia como contar sobre a sua existência.

A delação de Frances Haugen em 2021, ex-funcionária da equipe de “integridade cívica” do Facebook, sintetiza como esse modelo de negócios incentiva a produção de conteúdo que estimula a indignação, o ódio e, em última instância, a violência. A plataforma tem uma métrica denominada “interações sociais significativas”, que sistematiza um conjunto de critérios, com diferentes pesos, para determinar qual conteúdo teria maior alcance de audiência. Os critérios são o acúmulo de curtidas, comentários, compartilhamentos e tempo de visualização, entre outros.

A partir de 2017, a reação de “raiva” passou a ter peso cinco vezes maior que os demais tipos de curtidas e, conforme apontam os próprios documentos revelados, as equipes identificavam que os conteúdos que recebiam maior quantidade desse tipo de interação eram aqueles considerados publicações “controversas”. A empresa estimava que a moderação removia menos de 5% do discurso de ódio na plataforma.

De olho nos lucros, as empresas reforçam as polarizações e desequilibram as disputas

Com relação às demais plataformas, embora as funcionalidades de serviços sejam distintas, os indícios apontam para a mesma lógica. Tanto o motor de busca do Google quanto o repositório de ­vídeos do YouTube oferecem a venda de anúncios digitais a partir da extração dos dados dos usuários. O sistema de recomendação e autoexecução de vídeos do ­YouTube, por exemplo, responde, segundo a própria empresa, por parte “significativa” do universo de visualizações registradas na plataforma, mais do que as buscas diretas e as inscrições em canais. Há pesquisas que constatam um viés na promoção de conteúdos racistas e violentos, com o objetivo de buscar manter o maior tempo possível de atenção dos usuários.

O alcance orgânico (não pago) das publicações está, portanto, condicionado a critérios opacos: aos pesos configurados pelos algoritmos e às condições do trabalho humano na plataforma. Por outro lado, o alcance pago não assegura que a comunicação impulsionada financeiramente está alcançando o perfil da audiência pretendida pelo anunciante. Não há auditoria alguma e tampouco transparência das entregas realizadas.

Enquanto a legislação brasileira se esforça para instituir fundos públicos de financiamento de campanha com o propósito de garantir algum tipo de isonomia entre as forças partidárias, esse tipo de discriminação opera de forma a reforçar polarizações. A arbitrariedade acontece pela forma como seus algoritmos entendem e interpretam o conteúdo da mensagem e o perfil do anunciante.

A própria Justiça Eleitoral se vê dependente das políticas de moderação das plataformas. A eleição de 2018 no Brasil foi a primeira em que, ao firmarem o memorando com o Tribunal Superior Eleitoral, essas empresas foram reconhecidas como atores com algum grau de responsabilidade com a integridade do processo eleitoral. Mas não existem mecanismos que deem condições ao TSE de verificar se essas medidas estão sendo seguidas, em que pesem os compromissos assinados com as proprietárias das plataformas.

A dinâmica acelerada da comunicação nas plataformas não afeta apenas as forças políticas envolvidas diretamente na disputa eleitoral. A própria Justiça Eleitoral, apesar de sua resistência, é instrumentalizada pela lógica dessa dinâmica como recurso da disputa das eleições. Como apontou um estudo do ­InternetLab, parte da utilidade das demandas apresentadas à Justiça, pelas forças partidárias, está no uso de decisões judiciais como insumo para produção de conteúdo e engajamento nas plataformas.

Todas essas questões são sintomas de como, mesmo na era digital, o dinheiro segue impactando as condições da disputa eleitoral. Porém, tão grave quanto isso é a forma como essa influência se organiza: a partir de um modelo de negócios das plataformas que é opaco, fechado e transnacional, refratário a medidas regulatórias. É fundamental que essa dimensão seja considerada em uma nova rodada de discussão a respeito da operação das plataformas e da integridade democrática. •


*Alexandre Arns Gonzales é pesquisador colaborador do Instituto em Ciência Política da UnB. Graduado em Relações Internacionais pela Unipampa, é mestre em Ciência Política pela UFRGS e doutor pela UnB. Rachel Callai Bragatto é doutora e mestre em Sociologia e jornalista pela UFPR. Foi visiting researcher na Universidade da Califórnia e hoje pesquisa temas como democracia digital, participação política e cibercultura.

Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, acesse: https://observatoriodaseleicoes.com.br

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A serviço das Big Techs

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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