Opinião

A profecia de Glauber Rocha

‘O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro’ foi profético na continuidade de um país de injustiças sociais, destino irreversível, esperando um novo cangaço

Imagem: Reprodução
Apoie Siga-nos no

I –

Da época em que foi lançado e até hoje, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) é o melhor filme brasileiro. Mais de meio século, e nada maior, mais instigante. Alguns outros, claro, bons, mas distantes das obras-primas glauberianas.

O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962 – vencedor do Festival de Cannes); Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Bye, Bye Brasil (Cacá Diegues, 1980), Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) podem ser quatro exemplos, em sequência cronológica. Haveria outros, mas estes os que mais chamam minha atenção, escolha feita por suas diferentes feições:

  1. O primeiro, além da valiosa premiação, é um ótimo filme, roteiro adaptado de peça de Dias Gomes (romancista, 1922-1999). Realizado por um diretor, antes ator mediano de filmes românticos e de chanchadas, mas com história e elenco bem escolhido, acabou pouco prestigiado pela intelectualidade de esquerda, onde morava o grupo mais jovem, criador do movimento do Cinema Novo, criativo, e que na época se jogava de cabeça em temas políticos e sociais que dominavam a cultura no Brasil;
  2. Também roteiro adaptado de um livro (1938), este de Graciliano Ramos (1852-1953), o que já é um diferencial pela excelência da obra. Acabou sendo cultuado pela vida e obra do escritor, mas também pela excelente direção de Nelson;
  3. O terceiro, este sim autoral, retrata um grupo mambembe que ‘descobre’ o Brasil das antenas de TV e traça o caminho inicial de um país que, se pensava, acabaria usando seus recursos naturais a favor de uma etapa de modernização e inserção no mundo desenvolvido, a partir da nova capital Brasília. Mais uma vez, excelente elenco;
  4. O mais recente, Bacurau, de temática e linguagem próximas às dos “faroestes sociais” do Cinema Novo, traz fortes traços da linguagem do baiano Glauber, que tão cedo nos deixou em ver navios logo afundados.

Do Dragão, queixaram-se público e críticos da época e, creio, até hoje em dia o fariam, de um Glauber hermético. Não foi o que analisou o diretor norte-americano Martin Scorsese. Sem nunca ter pisado no nordeste brasileiro, o entendeu, conforme depoimento abaixo:

II –

Glauber fez de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro uma continuação de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Em ambos, cada sequência perpassa a vida real no sertão nordestino e o brado voluntarista do cineasta: “Mais forte são os poderes do povo!”

Hoje em dia, sabemos que não.

Fatos da vida real adaptados em alegorias operísticas que somente poderiam sair da cabeça de um gênio, lido e vivido naquela região abandonada do Brasil, como o fez o melhor da literatura brasileira, de Gilberto Freyre (1900-1987) a Ariano Suassuna (1927-1914). Tudo estará no dragão e no santo.

A essência de nosso desenvolvimento por muitos anos e, creio, em menor intensidade até hoje, exceção aos períodos de eleições, sempre entendeu a região Nordeste como de clima hostil, falta de chuvas e águas, secas devastadoras, desindustrializada por sua logística em relação aos centros do poder e da renda nacionais, conterrâneos com menor expressão intelectual, exército de reserva de trabalho fornecedor apenas de mão de obra não qualificada para o Sul Maravilha.

Por óbvio, área assim desassistida acabaria concentradora de latifúndios, coronelismo e enxadas escravizadas (consultar Vitor Nunes Leal e Gondim da Fonseca), só poderia se transformar em região de violentos conflitos sociais.

III –

Morto o capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião (Serra Talhada – PE, 1898 – Poço Redondo -SE, 1938), sua mulher Maria Bonita, e outros membros do cangaço, em emboscada de volante sergipana, cabeças cortadas para exibição exemplar na região, Glauber foca a narrativa da atuação do bando de um dos capitães dos subgrupos do Lampião, Cristino Cleto, Corisco, o Diabo Loiro (Água Branca – AL, 1907 – Barra do Mendes – BA, 1940) e sua mulher, a guerrilheira Dadá.

À semelhança de Lampião, o novo bando segue atacando, com violência ainda maior, outras regiões desprotegidas do sertão nordestino, até serem assassinados por Antônio das Mortes, um jagunço contratado por coronéis, comerciantes e fazendeiros, apoiados pelo governo de Getúlio Vargas, pressionado pelas elites locais a acabar com a bandidagem no Nordeste.

É da capital federal, pois, que vem o apoio para que volantes estaduais exterminem o cangaço que, agora dividido em subgrupos, praticava seus ataques (invasões de fazendas, pequenas cidades, roubos, assassinatos), chefiados pelo capitão Corisco e outros cangaceiros.

Em Deus e o Diabo, Corisco e Dadá serão baleados por mãos de Antônio das Mortes, não sem que Glauber deixe de expressar sua crença numa futura e possível vitória dos poderes do povo, filmando Corisco fugindo em desabalada carreira em direção ao mar, metáfora de que um dia “o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”.

 IV –

No Dragão e o Santo, segunda película, que mais tarde será constituída em trilogia com A Idade da Terra (1980), o cangaceiro será Coirana, também remanescente do bando de Lampião e Corisco. Ele e seu grupo ocupam a vila Jardim de Piranhas para lutar contra os interesses de um coronel da cidade e sua esposa (a atriz Odete Lara exuberante), o delegado e o padre que, em conluio, exploram o povo da aldeia.

Para manterem o poder contratam Antônio das Mortes. O Matador de Cangaceiros, famoso pelo fim de Corisco e Dadá, deverá enfrentar o capitão Coirana, já adorado pelo povo, e matá-lo.

Glauber, em sua criatividade, introduz na guerra do Dragão com o Santo personagens que reproduzem as características religiosas e místicas do campesinato local. Cantorias e cordéis louvam o valente cangaceiro.

Irão tornar-se fundamentais ainda: um beato agitador; uma jovem acreditada ser Santa Bárbara; o professor (intelectual sem destreza para a violência), mas que percebe as raízes dos conflitos em que poderão chegar, bem como as razões para a violência do cangaço e, finalmente, um narrador cordelista cego, que faz da música elemento sempre fundamental nas narrativas de Glauber. Estarão nesses personagens e intersecções as chaves para entender o filme.

São as contradições do capitalismo vigorando numa pequena cidade da caatinga da região Nordeste. O poder em recortes de interesses pessoais, ainda que de riqueza diminuta, serve para criar a ganância dos opostos, ao ponto dos massacres.

Nada diferente do que é o Brasil atual.

O coronel, com medo de que uma reforma agrária venha tirar-lhe as terras e o gado, não confia que único mercenário irá livrá-lo do capitão cangaceiro. Prefere, então, unir-se ao delegado, com final trágico para ambos.

A sequência mais impactante do filme é a luta à facão de Coirana e Antônio das Mortes, os dois à distância de apenas um lenço vermelho entredentes.

Está ali o auge do filme, na linguagem operística do diretor. O Dragão vence, mas resolve poupar da morte o cangaceiro, intervenção de Santa Bárbara (Igreja). O cangaceiro une-se ao povo nas montanhas e ali agoniza até a morte.

O coronel apela a mais um grupo de jagunços, desta vez liderados por Mata-Vaca, o que faz Antônio das Mortes abandonar a empreitada, para ele já cumprida.

Para apostar em sua vontade e ideologia de que “mais forte são os poderes do povo”, quem irá matar o Coronel, enfiando uma lança de São Jorge em seu peito, será o cego cordelista, vestido com os trajes de Oxóssi. Morre o Coronel Dragão da Maldade nas mãos do Beato Santo Guerreiro.

Antônio das Mortes segue por estrada asfaltada, símbolo de que a modernidade estava perto, assim como o capitalismo social, depois de sinais de arrependimento junto à Santa, na contramão de caminhões que passam velozes rumo ao futuro que deveria chegar ao Brasil moderno. É importante notar seus escritos sobre o ideólogo do regime militar, Golbery do Couto e Silva.

V –

Apesar de bastante criticado no Brasil, o que causou as costumeiras respostas enfurecidas de Glauber, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro ficou em segundo lugar no Festival de Cannes de 1969.   


Somente depois do prêmio e aclamado pela crítica internacional, com o título Antônio das Mortes (mais assimilável), considerado uma obra-prima do cinema mundial, é que o Brasil passou a olhar com mais atenção para a narrativa de Glauber.

Para tanto, contribuiu sobremaneira a realidade brasileira nas últimas cinco décadas.

Atrasado, subdesenvolvido expressão exata para a falácia de emergente, desigual identitária e socialmente, pífias inovações tecnológicas, financista até o ponto de travar o processo de industrialização, deficitário em saúde e educação, favorecedor de corrupção em todas as camadas da política e do empresariado, sobraram-lhe as glórias das agricultura, pecuária e seus negócios, que de forma fálica avançaram sobre terras baratas, insumos importados e sobre precificados depois da privatização da indústria nacional de matérias-primas, tudo amparado nos interesses e bestialogia de federações, confederações e sindicatos patronais, amparados em órgãos agrícolas governamentais e o poder incumbente central.

Assim nos autodenominamos o “celeiro do mundo”, reproduzindo o pior do capitalismo, como mostrado na obra-prima de Glauber Rocha, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, e até hoje vigente quando se olha o setor com a lupa do social e não apenas “vista assim do alto”.

Será que, passados 50 anos, ainda não foi possível entender que Glauber foi, antes de tudo, profético, em suas alegorias operísticas? Que sempre nos faltou um cangaço para, pela política ou pela violência, fazer valer que “mais fortes são os poderes do povo”?

Não. Nosso modelo agropecuário, até se transformar numa cadeia de negócios, exterior e interior, se formou, estruturou e fortaleceu a partir e durante os governos originários do golpe civil-militar de 1964. Nada estranho para quem apenas queria afastar o Brasil do comunismo, certo?

“Cangaceiros”, como João Goulart, Miguel Arraes, Almino Afonso, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Francisco Julião, Dom Hélder Câmara e Pedro Casaldáliga, organizações de esquerda, a União Nacional de Estudantes (UNE), a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), alguns militares sublevados, subgrupos e seus capitães, eu, para eles, como no cangaço, estávamos espalhando pelo Brasil, politicamente, sem violência ou fora do regime democrático, de forma diferente do que se passou na Jardim de Piranhas, de Glauber, o Brasil pular etapas até chegar a uma forma autônoma de capitalismo moderno, social e democrático.

De 1964 a 1985, enquanto duraram os governos militares, é verdade, sem povo feliz ou atendido em suas necessidades básicas, muitos setores do capitalismo brasileiro avançaram. O agronegócio um deles.

Ou nem tanto.

Com vários crimes. A marginalização da pequena agricultura familiar e de subsistência, em detrimento de um setor exitoso que deflora matas virgens com espermas inertes incapazes de reproduzir e valorizar, como patrimônio, beleza e natureza.

O filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro foi profético na continuidade de um país de injustiças sociais subdesenvolvido no planeta, destino irreversível, esperando um novo cangaço.

Glauber Rocha não morreu!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo