Jaques Wagner

sen.jaqueswagner@senado.leg.br

Senador (PT-BA). Foi governador da Bahia (2007-2015) e ministro do Trabalho (2003-2004), Defesa (2015) e Casa Civil (2015-2016).

Opinião

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A praia é nossa

A privatização de terrenos à beira-mar ameaça o ecossistema costeiro e o acesso do povo a um patrimônio que hoje pertence a todos os brasileiros

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Créditos: EBC
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Nas últimas semanas, o debate em torno da chamada “PEC das Praias” tomou conta das redes sociais, do noticiário e das rodas de conversa por todo o País. Não é por menos. O assunto é delicado, merece uma discussão mais aprofundada e algumas reflexões para que possamos avançar sobre um tema que pode afetar a vida de milhões de brasileiros.

A PEC 3/2022 permite a transferência dos denominados terrenos de marinha, hoje sob responsabilidade da União, para ocupantes particulares, estados e municípios. Essas áreas se estendem por toda a costa brasileira na faixa de 33 metros contados a partir de uma linha imaginária conhecida como “preamar” em direção ao interior do continente. Também são consideradas margens de rios e lagoas que sofrem influência de marés.

O debate ganhou intensidade após audiência pública realizada no Senado, em que a Secretaria de Patrimônio da União do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos se posicionou claramente contra a proposta, juntamente com o Ministério do Meio Ambiente e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

Desde a retomada da discussão sobre a matéria, já aprovada na Câmara, a gestão do presidente Lula posicionou-se contrária à proposta. Os argumentos são bem claros: a medida impacta diretamente na proteção das áreas costeiras e na forma como elas são ocupadas pela população.

Uma eventual aprovação da PEC traria vários riscos, como aumento da especulação imobiliária, impactos ambientais descontrolados e imprevisíveis, perda de receitas para a União (1,1 bilhão de reais por ano), insegurança jurídica e ameaça à soberania nacional. Haveria ainda consequências negativas para as colônias de pescadores, marisqueiros e outros grupos que dependem desse ecossistema para sua subsistência.

O assunto está longe de ser exclusividade brasileira e acumula polêmicas pelo mundo. O caso da Itália é emblemático. O país é hoje um dos que possuem o maior porcentual de região costeira privatizada. Um estudo de 2021, divulgado em reportagem do site Opera Mundi, revelou que mais da metade das praias italianas é gerida pelo setor privado.

A promessa de que a gestão particular seria rigidamente fiscalizada não se concretizou. Ao contrário, algum tempo depois uma nova lei permitiu a renovação automática dos contratos de concessão em caráter vitalício e hereditário. A consequência revela-se em outra pesquisa, de 2020: 41,9% dos italianos disseram não ter condições de passar uma semana de férias na praia. Há casos de diárias custando 150 euros, ou mais de 800 reais, o que evidencia a elitização desses espaços.

Do mesmo modo, a PEC em tramitação vai na contramão da legislação de países desenvolvidos como EUA, Noruega, Inglaterra e Portugal, que defendem a preservação e o reconhecimento das áreas litorâneas como patrimônio público. A Espanha, que havia privatizado boa parte de seus terrenos de marinha, voltou atrás e agora enfrenta problemas para desapropriá-los. A França também tem recomprado áreas costeiras privatizadas para restaurá-las. No Reino Unido, o ­National Trust tem iniciativa semelhante.

Ainda que não trate especificamente de privatização da areia ou do mar, a PEC permite que particulares sejam donos dos acessos. Se o caminho para a praia tem dono, só chega à praia quem ele quiser.

Além disso, há que se considerar o fator ambiental. Como vimos recentemente no Rio Grande do Sul, os impactos provocados pelas mudanças climáticas estão provocando, de forma cada vez mais frequente, uma série de inundações, invasões de ressaca e de marés de tempestade. Por isso, é fundamental escutar climatologistas, oceanógrafos, ambientalistas, biólogos e outros especialistas antes de levar a cabo qualquer demanda que possa ameaçar o meio ambiente.

Vale lembrar que a proposta teve a oposição até mesmo do governo anterior. Em fevereiro de 2022, quando o texto foi aprovado na Câmara, a Secretaria de Patrimônio da União, então ligada ao Ministério da Economia, alertou que a aprovação representaria a “maior transferência de patrimônio público para o privado que se tem notícia na história”. A liderança do governo na Casa orientou, inclusive, voto contrário.

Diante de todo esse histórico e de tantos alertas, precisamos manter a gestão dos terrenos de marinha nas mãos do ­Poder Público. Só assim seremos capazes de garantir seu papel fundamental na prevenção de riscos, no equilíbrio do meio ambiente, no enfrentamento da crise climática e na defesa da nossa soberania. Nossas praias são um patrimônio que não pertence a nenhum governo. Ele é, e sempre será, do povo brasileiro. •

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A praia é nossa’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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