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A PGR e o atraso civilizatório

A decisão pelo arquivamento de sete das dez acusações da CPI da Covid é acintosa e representa um atentado à Constituição

A PGR e o atraso civilizatório
A PGR e o atraso civilizatório
Prédio do Ministério Público Federal, em Brasília. Foto: Antonio Augusto/Secom/PGR
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Ao pedir o arquivamento de quase todas as investigações do relatório final da CPI da Covid, a Procuradoria-Geral da República tomou uma decisão absolutamente equivocada no plano do Direito. Como consequência, levantou suspeitas, manifestadas pela mídia, de intenção política de preservar o presidente da República.

É inegável que houve por parte do governo federal, na condução do enfrentamento da pandemia, uma postura contra a ciência, uma atitude ilegal e inconstitucional. Seguir as recomendações de entidades científicas durante uma pandemia não representa decisão facultativa: trata-se de um dever, como advertia, em 1938, o jurista Themístocles Cavalcanti. Estudos da Faculdade de Saúde Pública da USP demonstram claramente a conduta delituosa do governo federal na produção de diversos atos administrativos durante a referida pandemia.

O que se deu no Brasil foi o oposto. Bolsonaro militou contra as medidas sanitárias e agiu contra elas. Atrasou a compra de vacinas, incentivou aglomerações e defendeu a cloroquina, na contramão de pareceres científicos sobre a substância, além de haver suspeitas de que possa, eventualmente, ter prevaricado no caso do contrato do imunizante Covaxin.

A PGR argumentou não haver materialidade nesses crimes. Grave equívoco. Bolsonaro não apenas verbalizou ser contrário às medidas sanitárias cabíveis no cenário que nos assolou. A decisão de negar-se a comprar vacinas, por si só, causou a morte de um grande número de brasileiros. Essas vidas poderiam ter sido poupadas com a compra dos imunizantes em tempo hábil. Há um impacto direto e palpável da ação do presidente nos resultados devastadores da pandemia no País. A tragédia só não foi maior graças ao governo do estado de São Paulo e ao Instituto Butantan, que, nos primeiros meses de 2021, ofereceram a ­Coronavac à população.

Ao cometer tais equívocos jurídicos, a PGR compromete sua imagem e a do Ministério Público perante a sociedade. O MP, por sinal, costuma ser alvo de críticas e questionamentos por ter alguns dos servidores públicos mais bem remunerados do Brasil, e o arquivamento do inquérito em muito contribui para reforçar vieses negativos sobre o funcionamento dessa instituição.

Equívocos dessa natureza são corriqueiros em nossa história. Os governos brasileiros, em sua maioria, se caracterizaram por nomear procuradores-gerais que operavam como aliados no acobertamento de transgressões. É notório o caso de um deles que, no mandato de FHC, ficou conhecido como “engavetador-geral da República”. No período da ditadura, tal deturpação institucional tornou-se estratégica para efetivar intenções nefastas. Isso sempre ocorreu, salvo nos governos de Lula e Dilma, que nomearam procuradores-gerais com base em uma eleição interna, possibilitando ao Ministério Público atuar com muito mais autonomia, inclusive cometendo abusos contra o governo.

A decisão pelo arquivamento de sete das dez acusações da CPI da Covid é acintosa e representa um atentado à Constituição. Cabe, inclusive, o pedido de ­impeachment do procurador-geral, medida impensável pelo fato de o Parlamento estar sob domínio do atual governo. Caso Bolsonaro não seja reeleito, nada impede que, no próximo mandato, o futuro procurador-geral reabra esses inquéritos. Evidentemente há no Ministério Público uma ala efetivamente democrática que cumpre a Constituição e as leis. Esperamos que, em alguma ocasião, um dos integrantes dessa ala seja nomeado para restabelecer a normalidade.

Por ora, o que está decidido é definitivo. Se o procurador-geral não quer fazer a denúncia, ninguém pode obrigá-lo, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal. O STF não tem o papel de substituir o Ministério Público. As únicas questões em que o STF pode interferir são aquelas que, no Direito, são chamadas de ­contempt of Court (desacato à Corte, em inglês), quando a própria Corte é vítima de violência e o MP não faz nada a respeito.

A omissão da PGR nessa circunstância de arquivamentos indevidos configura mais um elemento caótico proporcionado por este governo. O funcionamento das instituições tem sido continuamente abalado na gestão de Jair Bolsonaro, e são fartos os exemplos dessas desvirtuações – desde ataques infundados às urnas eletrônicas até o indulto ilegalmente concedido ao deputado Daniel Silveira. Os atentados do presidente contra a saúde pública não podem passar impunes, bem como todo o processo de escalada que envolve o nosso recente atraso civilizatório. Urge que esse declínio generalizado seja interrompido, para que possamos voltar a ter recursos mínimos para a reconstrução do País. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A PGR e o atraso civilizatório”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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