Eugênio Aragão

Advogado, ex-ministro da Justiça e professor da UnB

Opinião

A necessária revisão do poder investigatório criminal do Ministério Público

Trata-se de ótima oportunidade de rever conceitos e abrangência das atribuições do órgão acusador no processo penal

Eugênio Aragão (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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Estão pautadas para 23 de março próximo, no STF, três ações de controle concentrado de constitucionalidade, todas da relatoria do ministro Edson Fachin, todas tratando da conformidade, ou não, dos poderes de investigação criminal do Ministério Público com a Constituição. É uma ótima oportunidade para rever conceitos e abrangência das atribuições do órgão acusador no processo penal.

O assunto para lá de polêmico foi o estopim da crise política que redundou na destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Explico melhor. As manifestações que tomaram conta do País, em 2013, se iniciaram inocentes, a reivindicarem tão e só passe livre e congelamento dos preços de passagens de transporte público em São Paulo. A resposta violenta da polícia paulista, porém, desencadeou onda de protestos em todas as capitais do país e incendiaram o ambiente político. A revolta contra tudo e todos parecia que tinha perdido pauta e agenda. Era a bronca pela bronca, quando, do nada, a corporação dos membros do Ministério Público logrou capitalizar para si a insatisfação, direcionando-a para a ampliação de seus poderes no suposto “combate à corrupção”.

O mote foi a iminência de votação, no Congresso Nacional, da famigerada PEC 37, que dava à polícia judiciária o assim chamado “monopólio” da investigação criminal. O ambiente político, antes da apropriação corporativa dos movimentos de rua, era francamente favorável à aprovação da PEC no Legislativo. A bancada da bala e o lobby das polícias estavam empenhados na pressão sobre todos os parlamentares, lembrando-lhes de abusos no poder de acusar políticos, tornados corriqueiros desde o impeachment de Collor de Mello.

Num contra-ataque midiático profissional, muito bem articulado, as associações de classe do Ministério Público conseguiram, no entanto, ganhar para si o apoio dos revoltados sem rumo, nas ruas das grandes cidades. De repente, estes tinham uma pauta: a luta contra a “impunidade dos corruptos”. E, nesse balaio de gatos, entraram, como exemplos a seguir, a Ação Penal 470 (a do assim denominado “Mensalão”), as Operações Banestado, Satiagraha e outros tantos espetáculos encenados nos anos anteriores contra empresários e políticos que, na perspectiva do ministério públicos, mereciam ser eternamente enjaulados, custasse o que custasse.

Essa onda de populismo penal mobilizou as massas e fez com que a PEC 37, de projeto corporativo das polícias, passasse a ser a “PEC da impunidade”. Como era agora de se esperar, foi fragorosamente derrotada no Congresso, vendo os promotores e procuradores sua reputação e seu apoio popular enormemente ampliados. Estava pronto o caminho para a nova aventura. No início do ano seguinte, pouco depois da vitória do movimento populista, instaura-se a Operação “Lava Jato”, que contaminou as eleições de 2014 e deu o Leitmotiv para desconstrução do suporte político ao governo de Dilma Rousseff, quando reeleita.

O assunto na pauta do STF é complexo, tanto politicamente, quanto tecnicamente. Para começar, nem a Constituição e nem o Código de Processo Penal contém o mais leve vestígio de permissão à investigação penal pelo Ministério Público. As teses corporativas que sustentam a suposta atribuição se baseiam em interpretações que se querem “sistemáticas” e estudos de direito comparado.

As primeiras, construídas interesseiramente, se calçam no argumento a maiori, ad minus, quem pode o mais, pode o menos. E os derradeiros desconhecem, em matreira seletividade, o caráter único da arquitetura institucional do Ministério Público brasileiro.

O argumento a maiori, ad minus, na caracterização dos poderes persecutórios do órgão acusador, é falacioso.

A investigação criminal, do ponto de vista dos direitos e das garantias constitucionais, não é um “menos” em relação à propositura da ação penal. Sua lesividade social para aquele apanhado pela supremacia do monopólio de violência do Estado é a mesma numa e noutra. Iniciada a persecução penal – e sua senda começa com a simples notícia do crime – opõem- se o Davi, na pessoa do arguido, e o Golias, no peso da instituição estatal. Não fossem o direitos e as garantias processuais, o arguido seria jogado num verdadeiro moedor de carne.

A ação investigatória do Estado é tão contundente que precisa ser fiscalizada em todos os seus passos. E fiscalizada desinteressadamente, sem parti pris, sem viés, sem que se transforme num mero esforço de confirmar teses aleatórias previamente cogitadas por profícua fantasia de um policial ou um promotor ávido por ter seu momento de glória.

O sistema de persecução estabelecido na Constituição é um sistema de filtros sucessivos. A variedade de órgãos envolvidos na tarefa de definir autoria e materialidade – polícia, Ministério Público e magistrado – não constitui um amontoado de atores fungíveis entre si. Há ordem de ingresso no cenário persecutório. Cada qual tem papel relevante, mas provisório, no estabelecimento da verdade processual que caminha para a absolvição ou para a condenação.

No sistema de filtros sucessivos, a polícia age sob certa tutela no Ministério Público, que, para propor a acusação, se utilizará, no todo ou em parte, das conclusões investigativas da autoridade policial. Pode se convencer, ou não, das teses trazidas nos autos do inquérito. Pode até pedir absolvição, se, diferentemente do que entende a polícia, não vislumbrar elementos para acusar. Afinal, mais do que mero acusador repetidor de teses policialescas, o Ministério Público é fiscal da lei. Tem o dever de acusar se há crime de ação pública, mas tem, igualmente, o dever de impedir a continuidade do iter persecutionis se constatar a inocência do arguido ou a falta de provas contra si.

Por ser fiscal da lei, o Ministério Público exerce o primeiro filtro de garantia dos direitos do acusado: é o natural controle externo da atividade da polícia judiciária na investigação criminal. Se o acusador se confundir com o investigador, esse filtro deixa de existir. E o limite para a fantasia acusatória passa a ser o céu. A investigação sem viés exige que ela seja posta à prova por aquele que vai montar a tese acusatória em juízo. E, inversamente, a consistência da acusação depende dos elementos probatórios imparcialmente colhidos no inquérito policial. Sem base nenhuma na investigação, a denúncia passa a ser obra de ficção do promotor. Mas certo é, por isso, que quem investiga não pode ser ao mesmo tempo acusador. Aqui não tem mais nem menos. Polícia e Ministério Público não estão em relação hierárquica, mas de colaboração crítica. Só assim se resguarda a posição de fragilidade do arguido.

O Ministério Público, por sua vez, é tutelado, por assim dizer, pelo magistrado que preside o processo penal. Este é o segundo filtro. É o magistrado que sopesa a adequação das medidas constritivas cautelares requeridas pela polícia ou pelo acusador, cada um em sua hora. É ele quem recebe, ou não, a denúncia, conduz a instrução no contraditório entre acusação e defesa e, ao final, dá a sentença, condenatória ou absolutória. Isso também não transforma o juiz num senhor da persecução. Ele é balizado pela tese acusatória e sua ação de ofício é restrita aos casos de polícia do processo. Como entre polícia e Ministério Público, não há relação de hierarquia entre Ministério Público e juiz, mas, sim, aqui também, de cooperação crítica. O juiz que conlui com o Ministério Público torna injusta a prestação jurisdicional e inócuo o filtro necessário sobre a ação do acusador.

O juiz, ao final, também não faz o que quer. Sua sentença é posta sob controle consistência e legalidade por via dos recursos cabíveis às instâncias superiores. São “superiores”, igualmente, como um modo de dizer, pois o magistrado é independente na sua jurisdição e não deve salamaleques a desembargadores e ministros. Mas suas decisões estão sujeitas a duplo grau como garantia final do acusado. É o terceiro filtro indispensável à justeza e legalidade do veredito final, este definitivo sob a proteção da coisa julgada.

Nesse sistema persecutório, portanto, não há espaço para investigação criminal pelo Ministério Público, com exceção da hipótese no estatuto próprio, de crimes praticados por seus membros, prerrogativa que é companheira da independência funcional e autonomia institucional.

E nem se diga, numa segunda linha de argumentação, que na Itália ou em Portugal ou seja lá onde for, os poderes do Ministério Público abrangem o comando da investigação. Nesses países, como em outros, o Ministério Público é, por assim se dizer, uma repartição do Ministério da Justiça, sujeito ao poder disciplinar do titular da pasta, muito longe dos nossos princípios institucionais da independência funcional, da unidade e da indivisibilidade que marcam a autarquia funcional do órgão. Com mais liberdade, mais filtros são necessários. Do contrário, como tem ocorrido em passado recente, o ministério público se converte numa metralhadora giratória e soberana, que não poupa ninguém senão a si mesma.

É verdade que o STF já se debruçou, em outro contexto político e social, sobre o tema que irá enfrentar dia 23 de março próximo. Os membros do Ministério Público, após adquirirem musculatura pelo apoio a seu populismo penal, lograram fazer com que a Corte optasse por caminho então mais moderado, limitado a formatar e domar a fera acusadora. Mas, num momento em que lutamos pela consolidação do Estado Democrático de Direito, após tantas desventuras políticas e institucionais desde aquelas infames manifestações de fascismo punitivista, está na hora de recolocar as peças do xadrez em seus lugares, dentro das regras do jogo. Punir, se necessário, sim, mas respeitado o devido processo legal, com os atores restritos a seus papéis, a permitir que os julgamentos sejam justos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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