CartaCapital
A nacionalização da Ford e o fim das revoluções burguesas
O fechamento da Ford no Brasil abre uma fresta para questionamento geral do sistema de exploração econômica no país.
“Do ponto de vista proletário, a hegemonia na guerra pertence àquele que luta com mais energia, que se vale de qualquer ocasião para desferir golpes no inimigo”, escreveu Lenin em 1905. O encerramento das atividades da Ford no Brasil, com todos os seus efeitos materiais e simbólicos, é uma das ocasiões em que se abre a oportunidade de reoxigenar não só o enfrentamento ao bolsonarismo e à agenda neoliberal, mas os marcos da luta anticapitalista.
O ex-deputado José Genoíno (PT-SP) conseguiu identificar essa oportunidade, trazendo ao debate a possibilidade de estatização da multinacional norte-americana e reinserindo a nacionalização de empresas na pauta da política nacional. De quebra ainda deve ter causado algum calafrio na ortodoxia liberal que, mancomunada com o neofascismo bolsonarista, costuma repetir como um mantra o slogan thatcherista de que “não há alternativa”.
No livro “O que é revolução”, Florestan Fernandes defende que as classes trabalhadoras precisam se libertar da tutela terminológica da burguesia e das relações de dominação que por meio do léxico das classes dominantes interditam o debate público, impondo seus termos como se fossem parte do ar que respiramos. Com o fim da União Soviética e o avanço de concepções relacionadas ao fim da História, estratégias relacionadas à nacionalização/estatização, tão presentes no Brasil e no mundo em outros momentos, perderam espaço na esteira do robustecimento ideológico do neoliberalismo, marcado estruturalmente por intensas privatizações.
Florestan ensina que se a massa dos trabalhadores quiser desempenhar tarefas práticas criadoras, ela precisa se apossar primeiro de determinadas palavras-chave estranhas ao universo das classes que não comungam do mesmo horizonte emancipatório. Devem, em seguida, “calibrá-las cuidadosamente, porque o sentido daquelas palavras terá que confundir-se, inexoravelmente, com o sentido das ações coletivas envolvidas pelas mencionadas tarefas históricas”.
A tarefa histórica imediata da classe trabalhadora brasileira é derrotar o bolsonarismo e construir as bases de sua emancipação radical, o que exige táticas que não se restrinjam ao baixo teto das formas políticas e institucionais da democracia liberal.
Obviamente que nacionalizar empresas, embora desafine o coro dos analistas econômicos da Globonews, não é uma medida revolucionária por si só. Porém, se analisada em uma conjuntura tal qual a que nos encontramos, tem o potencial estratégico de causar a tensão necessária para avançar nas pautas da grande política, reconfigurar a esquerda para o ataque e reabilitá-la para sua unificação.
O anúncio da Ford também deixa evidente a debilidade histórica da burguesia nacional em tocar tarefas construtivas, de maneira que são as classes trabalhadoras que têm de definir, elas próprias, o eixo de uma revolução burguesa que a própria burguesia é incapaz de tocar. “Sem uma maciça presença das massas destituídas e trabalhadoras na cena histórica, as potencialidades nacionalistas e democráticas da ordem burguesa não se libertam”, escreve Florestan, atentando para o fato de que “a revolução dentro da ordem possui consequências socializadoras de importância estratégica”.
A indisposição da burguesia nacional em encampar reformas estruturais e demarcar contra políticas de desindustrialização se repete no fim das atividades da Ford no Brasil. A época das revoluções burguesas já passou, diagnostica Florestan. “De onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada”, diria o Barão de Itararé.
A plataforma para a discussão sobre o caso da Ford foi dada. Resta agora avançarmos, solidificando sua nacionalização não como bravata – o que definitivamente não é -, mas como algo factível, viável e alinhado com os interesses e necessidades do povo trabalhador. Se a vitória é possível, a derrota, por outro lado, é praticamente certa caso a esquerda permaneça presa a reformismos, adotando uma tática alheia a um programa radicalmente oposto às políticas entreguistas e de desmonte do Estado ora implementadas por Bolsonaro.
O horizonte dessa estratégia, nunca é demais lembrar, é a superação da sociabilidade capitalista e a inauguração de um novo padrão de civilização, socialista, fraterno e igualitário. No alvorecer desse mundo, o bolsonarismo será lembrado apenas como uma das obscenas expressões históricas que a ordem burguesa tomou durante sua existência.
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