Opinião

A monotonia da produção no campo

É muito mais fácil discutir a transição para o Antropoceno do que para regrar o capitalismo selvagem, principalmente em sua última versão de caráter financeiro

(São Desidério - BA, 11/09/2020) A força do agronegócio presente na região baiana..Foto: Isac Nóbrega/PR
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Com este texto espero ter finalizado um ano que me trouxe pesadas mágoas. Afora estarmos com um estadista humanista na Presidência do Brasil, comprovado em política, economia, soberania e costumes, pessoalmente, tive que suportar desgastes emocionais, financeiros e de saúde, que continuarei enfrentando no próximo ano, mas sem forte perspectiva de superá-los. Fraquejam, inclusive, paixão e resiliência em escrever. Afinal, de que me valeram esses 20 anos de criações semanais voluntárias? Militância? Mesmo a família e amigos mais próximos disfarçam um sorriso quando em novas rodas, menos íntimas, me perguntam o que faço. Evito citar administrador e pequeno empresário. Antes, relato escrever para GGN e CartaCapital. Escrevo, mas não tenho claro o que pensam deste trabalho os leitores e minhas editoras Lourdes Nassif e Thais Reis Oliveira, respectivamente. A primeira, talvez pelo livro Dominó de Botequim (2016), além de outras atividades, qualifica-me “escritor”; a segunda, como “colaborador”. Na verdade, Thais está correta. Há 78 anos, o que faço se não colaborar com o bem de humanidade e natureza? Se lhes parecer cabotino, tenham certeza, o é, ué!

O título da coluna tirei de entrevista que a ótima jornalista do Valor Daniela Chiaretti fez com o filósofo Ricardo Abramovay. Diferentemente deste mínimo colunista digital, Ricardo pouco deve se preocupar como engordar suas qualificações. Professor da USP, e daí em diante abundam (opa) cargos e títulos honoríficos.

Confesso que, apressado, e já o conhecendo como filósofo, quando eu na própria USP, liguei “monotonia da produção do campo” com o equívoco com que se presenteia outro filósofo, o alemão Karl Marx (1818-1883), quando citou “idiotia rural”, em seu (com Friedrich Engels) Manifesto Comunista (1848). Não se trata de “bobeira” de quem pratica agropecuária. Não, dignos leitores. Pesquisem.

Cinéfilo? Estaria Ricardo se referindo aos filmes do ator brasileiro Amácio Mazzaropi (1912-1981)? Eu os adoro e sempre que assisto a eles sinto-me relendo Os Parceiros do Rio Bonito (EDUSP, 1964 – 12ª edição/2017), de Antônio Cândido de Mello e Souza (1918-2017).

A tese do filósofo é romper com tal monotonia, a que, supostamente, viveriam caboclos, caipiras, campesinos, camponeses, lavradores, grandes produtores rurais, sertanejos e tabaréus. Visitei milhares deles em 60 anos de profissão, não percebi e nunca tive coragem de perguntar-lhes de alguma monotonia em suas atividades laborais.

Resumo, o romper de que trata o filósofo é conquistar sustentabilidade (novo, não?). Ampliemos citando as mudanças requeridas: 1) ter 65% [sic] da área de cultivo ocupada por única cultura – a “maldita” soja – não é sustentável; 2) intensificar reflexão para sair da época da Revolução Verde (1960/70) para a era do Antropoceno (o ser humano em oposição à natureza); 3) só assim chegaremos à economia de baixo carbono; 4) existem mais de 400 produtos cultiváveis no mundo e só nos alimentamos com 15, sendo 50% concentrados em quatro; 5) o mesmo se repete no complexo de carnes (pouca diversidade de raças – aves deveríamos nos alimentar de pardais?); 6) Na COP-28 de Dubai, o assunto, teve documento assinado por 160 países. Coonestou-se o óbvio e assim continuará sendo, mas Abramovay acha que precisa continuar a ser discutido.

Ou seja, as novas gerações devem continuar sendo óbvias, quem sabe, até a COP-50. Em Gaza?

Ricardo acrescenta o absurdo que é ainda existir fome no mundo e critica duramente os alimentos ultraprocessados (causadores da inflação de obesidade nos países ricos).

O filósofo e professor confessa ser dificílimo (ah, bom) tais mudanças, mas ainda assim parece desconsiderar os fundamentos do modelo econômico predominante no planeta. Todas elas estão inseridas, de forma profunda, inalienável eu diria, no capitalismo, impossível de retroceder, embora, certamente, discutível. Melhorada a sustentabilidade, sem dúvida. Mas só. Aliás, sem grandes utopias, ela tem sido, é, será.

Ainda assim, muito mais fácil discutir a transição para o Antropoceno do que para regrar o capitalismo selvagem, principalmente em sua última versão de caráter financeiro. Ou o professor pensa que a “monotonia da produção no campo” não se resume a oferecer o que o mercado pede?

Determinado por hábitos alimentícios milenares, característicos das várias regiões e de suas condições edafoclimáticas, mais tarde, logo apropriadas pelas inovações tecnológicas e a capacidade dos grandes conglomerados transnacionais de transformá-las em distribuição e divulgação comercial, através de extensas redes técnicas de venda, mídia convencional, internet.

E o monótono campo continua grudado na Revolução Verde, que não passou de importante incorporação de variedades de sementes modificadas, fertilizantes (apenas químicos, hoje não mais – cresce a incorporação de material orgânico e natural) e outros insumos nutricionais, fisiológicos e biológicos.

Querem saber do quanto é difícil até mesmo anular o óbvio, aquele que já está comprovado trazer malefícios à saúde? Nesta semana feérica, o presidente Lula fez alguns vetos pertinentes a trechos da lei dos agrotóxicos. Não teremos aceleração nas aprovações de comercialização de defensivos sem que sejam ouvidos Ibama e Anvisa. Fecham-se as portas abertas pela ministra ruralista Tereza Cristina. O “PL do Veneno” se danou e reclamam os presidentes de Associações e Federações Ruralistas, vários pertencentes às bancadas ruralistas. Tá com quem, ó emplumado Ricardo?

Soube que a Associação Nacional de Defesa Vegetal, sempre acusada de rebolar a defender os venenos agropecuários, foi substituída por certa Crop Life (o anglicismo é mais adequado), que também se manifesta contra os vetos do presidente da República.

Há dez anos, participei junto a outros especialistas de um fórum da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, Os rumos da saúde e da segurança alimentar no Brasil, tema parelho ao que hoje Abramovay traz ao Valor. Escrevi sobre o assunto neste site. Como sempre, houve pequena repercussão. Apenas de um “colaborador”.

Creio aquele evento ter sido mais realista, pois o Antropoceno de Abramovay não chega nem mesmo aos insumos que são usados na monótona produção de soja.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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