Opinião

A importância de surpreender

A extrema-direita trabalha bem os sentidos primários, primitivos: xenofobia, nacionalismo e temor do outro, do diverso, entre outros sentimentos noturnos. Para os progressistas, os desafios são bem maiores

A festa acabou. E agora?
Apoie Siga-nos no

“Fazer música não é tocar todas as notas certas. É causar uma reação, causar emoção”

Phil Stamper

Oscar Niemeyer costumava dizer que a arquitetura tinha de surpreender. Essa devia ser sua espinha dorsal. De certa forma, também se aplica às relações, individuais, interpessoais, e às coletivas, internacionais.

A extrema-direita trabalha bem os sentidos primários, primitivos: xenofobia, nacionalismo e temor do outro, do diverso, entre outros sentimentos noturnos.

Para os progressistas, os desafios são bem maiores, como bem tem frisado a colunista de CartaCapital Rita Von Hunty.

Um exemplo atual: o atual primeiro-ministro de Israel, um incerto Bibi, está atolado em vários escândalos de corrupção, sendo, claramente, além de genocida, corrupto e golpista, ao buscar modificar a constituição em proveito próprio, deslegitimando a Suprema Corte (alguém se lembra de outro país em que isso ocorreu?).

Fomenta um inimigo externo, único pretexto que pode adiar a prisão dele.

Alimenta, portanto, a guerra, pois o genocídio palestino adia as contas com a justiça.

Com efeito, Bibi terá de ser julgado por tribunal penal internacional, por crimes de guerra, se quisermos que o conceito de “comunidade internacional” continue a ter algum valor.

O crime dele mais recente, o “massacre da farinha”, viu os sicários dele atirarem e matarem mais de 100 pessoas, que aguardavam ajuda humanitária; ficaram feridos, ainda, mais de 700 outros palestinos.
Porém, não é apenas a extrema direita que pratica esse tipo de diversionismo (desculpem o trocadilho pobre).

Emanuel Macron, presidente da França, também o faz: incentiva a guerra na Ucrânia para vender armas (a França é o segundo exportador delas) e para desviar a atenção do arrocho que promove contra os trabalhadores e trabalhadoras francesas, do campo e da cidade.

Não tenho dúvida de que Bolsonaro teria tentado o mesmo caminho, caso o país tivesse alguma pendência internacional, com país mais fraco (covardes só ficam ‘machos’ com mais fracos).

Graças ao Barão do Rio Branco, que delimitou nossas fronteiras com 10 países vizinhos, não foi possível ao genocida local buscar aquela saída, que provavelmente teria sido apoiada pela banda militar (e a cada dia sabemos mais da implicação dos generais, da banda, no golpismo).

Vale notar que os cínicos do Norte (Emanuel está longe de ser o único) despejam recursos e oratória sobre a Ucrânia, mas quase nada dizem da responsabilidade deles quanto à guerra civil no Sudão, em que há 9 milhões de deslocados internos e em direção aos países vizinhos, sendo que 95% da população não consegue fazer sequer uma refeição por dia.

Será porque uns são brancos e outros, negros? É o que parece, ao menos.

Nesse sentido, a Vatican News traz uma reflexão interessante: “Metade dos recursos alocados pelos governos em todo o mundo para as forças armadas seria suficiente para fornecer assistência médica básica para todos no planeta e para reduzir consideravelmente as emissões de gases de efeito estufa.”

Em meio ao caos, um minúsculo pingo de luz: os principais partidos políticos e movimentos palestinos iniciaram negociações, em Moscou, para a formação de um governo de unidade nacional, na Palestina. Pode não parecer muito, mas é um passo na direção certa. Ainda não é música, mas já são notas, mesmo que dissonantes.

No nosso continente, as Américas, o cinismo tampouco deixa de reinar: o Canadá reimpôs vistos para cidadãos e cidadãs mexicanos que queiram se deslocar aos arpões de neve dele.

Estranhamente, seus produtos continuarão penetrando nos mercados mexicanos sem restrições, mediante todas as facilidades que o “Acordo de Livre Comércio da América do Norte” lhes confere. É a isso que chamam de reciprocidade? Inusitada interpretação do conceito, é de se convir.

Aliás, o que não falta no Hemisfério Norte são surpresas, nem todas boas.

Por exemplo, o Brasil já foi a sexta economia mundial, mas não fez parte do G 7.

O Canadá era a nona, mas lá estava. Agora caiu para décima, mas sem perder a cadeira no clubinho imperial.
Ou seja, não é a economia que conta, mas a ideologia, como Gramsci e Rosa Luxemburgo sempre souberam.

Quanto à esfera de gênero, Geni Núñez, em Decolonizando Afetos (Editora Paidós), traz elucidações: “A sobrecarga e a exploração do trabalho das mulheres, especialmente das não brancas, são o que sustenta toda a vida capitalista.”

No plano mais elevado, em que as ideologias buscam justificar a exploração, interpenetrando nas cosmovisões, na religiosidade, a autora aclara:

“Nós, como povos indígenas, nunca tivemos o desejo de ‘salvar’ os demais povos convencendo-os à força de que seus deuses eram falsos e de que apenas os nossos eram verdadeiros. Não tivemos e não temos esse tipo de prática porque as cosmogonias de nossos povos não nos orientam a isso. Não precisamos acreditar que as demais espiritualidades são falsas para validar as nossas, não precisamos inventar um ‘selvagem’ para nos sentirmos civilizados. Em outras palavras, não positivamos nossas diferenças de modo parasitário.”

Aduz também:

“Se a beleza salvasse da violência, nenhuma cachoeira seria exterminada, nenhuma arara seria morta, nenhum rio seria contaminado. Mas sabemos que nada disso tem a ver com beleza, e sim com poder…Autoestima precisa de alimento, de moradia, de trabalho digno para se fortalecer, de relações potáveis. Todas as existências são bonitas se estão viçosas, se vivem plenamente a potência e o prazer de seus corpos.”

Talvez, estejamos aqui para a sinfonia de nossas vidas, com movimentos alegres, tristes, mas únicos, como uma obra de arte que, reproduzida, será sempre diversa, recriada a cada nova interpretação.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo