Felipe Milanez

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Professor de Humanidades na Universidade Federal da Bahia. Pesquisa e milita em ecologia política.

Opinião

A hora das mulheres indígenas liderarem a política indigenista

Ninguém melhor do que Sônia Guajajara e Joenia Wapichana para a defesa e a promoção dos direitos dos povos indígenas

Sônia Guajajara e Joenia Wapichana passam a comandar órgãos ligados aos povos originários. Foto: Webert da Cruz/UN Women Americas and the Caribbean
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Vivemos um momento histórico, único e especial: o “começo de um novo tempo”, como assinalou a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, na sede da Funai em Brasília neste primeiro dia do novo governo. Na sua mesa estavam Joenia Wapichana e o cacique Raoni, que subiu a rampa do Palácio ao lado de Lula, junto de representantes do povo brasileiro, num dos momentos mais emocionantes da posse.

Sonia Guajajara é uma pessoa coletiva, que sempre anda junto dos parentes, e sua nomeação, além da sua grande capacidade de articulação política, representa uma verdadeira mudança: pessoas indígenas devem ocupar os postos e cargos que dizem respeito a suas realidades, aos interesses de seus povos, e as nomeações devem partir das bases e dos territórios. Esse é um novo país que surge!

A primeira ministra indígena será acompanhada da primeira presidenta da Funai, a extraordinária advogada e primeira mulher indígena a conquistar a vaga de deputada federal, por Roraima, Joênia Wapichana. A saída de um período de trevas está sendo liderada por aquelas que foram o principal esteio da resistência nos territórios: as mulheres indígenas. É emocionante ver esse novo mundo emergir!

A mesma Funai que perseguiu Sonia Guajajara, que perseguiu servidores não indígenas dedicados a servir ao país em sua missão institucional, a mesma entidade que funcionou para as negociações espúrias das invasões dos territórios, agora vai ter uma outra direção, aquela que está prevista na sua regulamentação: a defesa e a promoção dos direitos dos povos indígenas. Ninguém melhor do que Joenia Wapichana, junto de Sônia Guajajara, para liderar esse processo!

Trabalhei na Funai em 2006, no primeiro governo Lula, e não havia nenhuma pessoa indígena nas diretorias da Fundação. Apesar de ser uma reivindicação antiga do movimento indígena que a Funai fosse presidida por uma pessoa indígena, o racismo institucional impediu essa conquista por décadas.

Em 1984, o grande líder Kayapó Megaron Txucarramãe foi o primeiro indígena a assumir a direção do Parque Indígena do Xingu. Megaron trabalhou na Funai até ser demitido, no governo Dilma Rousseff, por protestar contra Belo Monte. A gestão de Megaron foi histórica e sinalizou o que era óbvio, mas o manto do colonialismo impedia: são as pessoas indígenas que devem ocupar as posições de direção sobre os seus interesses coletivos.

Esse momento chegou, e deve ser aprofundado para que todos os postos e cargos de decisão sejam ocupados exclusivamente por pessoas indígenas, pois dizem respeito a realidades e demandas de seus povos! Um novo indigenismo onde as pessoas não-indígenas possam efetivamente se posicionar como aliadas da luta, mas com respeito ao protagonismo. Um movimento que chamo de “indigenismo de retaguarda”, em alusão à expressão “intelectual de retaguarda” cunhada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos. Não mais um indigenismo que silencie as vozes indígenas, mas que esteja na retaguarda de uma luta coletiva.

Os povos indígenas atravessaram um período trágico cuja violência, que atingiu a toda a sociedade brasileira, foi desproporcional, marcado pelo genocídio. Nesses anos de um governo de ideologia fascista, foi quando o movimento indígena, em ação liderada pelo brilhante advogado Eloy Terena, levou o caso do genocídio de Bolsonaro para o Tribunal de Haia. Quando a advocacia indígena enfrentou nas cortes as medidas administrativas que tinham por fim atacar a existência dos povos indígenas.

Uma das ações mais emblemáticas que denunciaram o racismo institucional nesse período foi conduzida pela advogada Fernanda Kaingáng: a JBS havia demitido trabalhadores indígenas de um de seus frigoríficos em Chapecó, e o Instituto Kaingáng, atuou em conjunto com o Ministério Público do Trabalho para acionar a justiça. Os Kaingáng venceram em primeira instância e foram reintegrados e afastados com remuneração até o início das vacinações em terras indígenas.

Fernanda Kaingáng agora está sendo indicada pelo movimento indígena para assumir a diretoria do Museu do Índio, no Rio. Outra mudança histórica! Seria um aprofundamento necessário e urgente dessa mudança – o museu passou mais de duas décadas com uma mesma diretoria, atravessando governos diferentes de FHC, Lula, Dilma a Temer. É a hora de mudar essa história e construir um futuro diferente.

A indicação de Fernanda vem da base do movimento indígena, das organizações indígenas como representação feminina do Sul do Brasil. Fernanda trabalhou entre 2003 e 2010 como especialista indígena brasileira nas negociações do Protocolo de Nagoia, e desde 2010, passou a atuar prioritariamente no âmbito do Comitê Intergovernamental sobre propriedade intelectual, conhecimentos tradicionais e recursos genéticos, o IGC da Organização Mundial da Propriedade Intelectual e na sua proposta para o museu, inclui ampliar a participação indígena e qualificar essa participação nos foros internacionais. É advogada, ativista de direitos humanos, meio ambiente e cultura há 25 anos, brilhante intelectual do povo Kaingáng.

Fernanda elaborou um novo projeto para o museu que passa a se chamar Dos Povos Indígenas, com eixos de um programa elaborado e sofisticado. No novo museu, está prevista uma governança compartilhada, estímulo à cooperação e parcerias, uma série de medidas de trabalhar inter-institucionalmente culturas e expressões culturais dos povos indígenas, políticas de divulgação científica, formação de servidores.

É fazer nascer um museu muito maior do que o que sonhou Darcy Ribeiro. Vejo uma oportunidade histórica de se criar um centro ativo de produção de políticas públicas para a cultura com os povos indígenas. Darcy Ribeiro estará alegre onde estiver ao saber de uma possibilidade de uma nova missão ao museu: “Formular e executar políticas públicas para promoção e proteção da diversidade das expressões culturais tradicionais que integram o patrimônio cultural, material e imaterial dos povos indígenas, por meio de ações e programas elaborados em conjunto com os povos indígenas, suas organizações e comunidades.”

Em todas as coordenações da Funai há movimentação indígena nas aldeias e nas bases das comunidades para nomes indígenas chefiarem os postos. Espero que as nomeações históricas de Sonia Guajajara e Joênia Wapichana sejam parte de um compromisso que será assumido todos os dias pelo governo.

Viva a luta das mulheres indígenas– que lideram a mãe de todas as lutas, como diz Sonia, a luta pela Mãe Terra!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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