Luana Tolentino

[email protected]

Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

A história de Vânia Liberato e o Brasil que podemos ser

Vânia é um exemplo vivo dos impactos positivos das políticas de cotas e de expansão do ensino superior

Foto: Arquivo Pessoal
Apoie Siga-nos no

No início desta semana, ao abrir o Instagram, deparei-me com mensagens de três ex-alunas. Nelas, havia a imagem de um cartaz com fotos e informações a respeito da minha trajetória pessoal e profissional. Ele está afixado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto (ICSA/UFOP), que fica na cidade de Mariana (MG).

Ao vê-lo, fiquei grata, feliz, emocionada, e também um pouco confusa. Para minha vida, sonhei muitas coisas, mas nem de longe esperava ser tema de um trabalho acadêmico. Indaguei: quem teria feito o cartaz? Qual a motivação?

Pouco depois, encontrei as respostas para as minhas perguntas. Vânia Liberato, estudante do curso de Serviço Social da UFOP, era a “dona” do cartaz, que foi elaborado como parte de um trabalho que tinha o objetivo de apresentar a biografia de ativistas sociais. Ao entrar em contato com Vânia para dizer o quanto me senti honrada com a escolha dela, conheci uma mulher negra cuja história diz muito do Brasil que somos e do Brasil que podemos ser. Uma história que merece ser contada, reconhecida e aplaudida.

Nascida em Ouro Preto (MG), Vânia pertence a uma família formada por seis irmãos. Criada pela avó materna, assim como milhares de mulheres negras deste país, conheceu de maneira precoce o trabalho doméstico, profissão que mais do que qualquer outra guarda os resquícios dos quase quatro séculos em que o Brasil viveu sob o regime da escravidão. Contando sobre sua experiência, fica evidente que à Vânia eram negados um tratamento digno e uma série de direitos: “Eu chegava na casa da minha patroa às 8h e saía às 20h. Ela escondia o pão para eu não comer. Eu só almoçava às 16h, não podia almoçar antes dela. Eu não tinha condições de levar um lanche, pois, na época, trabalhava para colocar comida na mesa para os meus filhos. Eu ficava o dia todo na casa da minha patroa, e ela só conversava comigo através de bilhetes”.

Vânia teve seus direitos negados também durante seu percurso escolar. Na impossibilidade de concluir os estudos na adolescência, o fez em uma turma da Educação de Jovens e Adultos, quando já era mãe de três filhos. E foram eles que a motivaram a dar novos rumos, novas perspectivas para sua vida, quando lhe disseram que deveria ingressar no ensino superior.

Foram necessárias seis tentativas para que fosse aprovada no Enem. Em 2018, Vânia ingressou no curso de Economia da UFOP. Na época, ela trabalhava como faxineira em um hospital. Na condição de funcionária, procurou a responsável pelo setor e pediu que seu horário fosse mudado para que pudesse estudar. Seu pedido foi negado. Ao tentar barrar o direito de Vânia frequentar uma universidade pública, sua chefe evidenciou o desejo de perpetuar os lugares sociais historicamente pensados para as mulheres negras: o da limpeza e da subserviência.

Diante do não, Vânia teimou, insistiu e persistiu. Prosseguiu até o 6.º período do curso de Economia, mas percebeu que seu sonho, na verdade, era cursar Serviço Social. Mais uma vez, recomeçou, foi em frente. Atualmente, ela está no 3.º período.

Aos 52 anos, Vânia tem muitos planos para o futuro: “Meu sonho é me formar e ajudar as pessoas que têm os direitos negados como eu tive ao longo de toda minha vida. Sei o que é não ter comida, o que é ter familiares em situação de rua. Sei a diferença que faz ter os direitos garantidos. Quero lutar pelas pessoas que não têm” – ela confidenciou a mim em uma conversa via WhatsApp.

A trajetória de Vânia é marcada por muitas portas fechadas, pelo preconceito, mas também pela coragem, pela resiliência e pelo papel transformador da educação. Vânia é um exemplo vivo dos impactos positivos das políticas de cotas e de expansão do ensino superior, bandeiras dos governos do ex-presidente Lula, em resposta às reivindicações do Movimento Negro. Tais políticas, seriamente ameaçadas pelo neoliberalismo e pela extrema-direita, têm permitido à população negra reescrever sua história numa sociedade marcadamente racista, desigual e excludente.

Vânia honra o legado de nossos ancestrais, que ao longo de mais de 350 anos tiveram a humanidade negada. Vânia é motivo de orgulho para mim e deve ser também para as cidades de Ouro Preto e Mariana, para a UFOP, para quem sonha e tem esperança. Conforme mencionei no inicio deste texto, a biografia de Vânia transita entre o Brasil que somos e o Brasil que podemos ser.

A menos de 20 dias do segundo turno das eleições, lembro das palavras da assistente social, educadora e parlamentar Macaé Evaristo. Em entrevista à CartaCapital, ela afirmou que estamos diante de um plebiscito em que há somente dois caminhos: a democracia ou a barbárie.

Já fiz a minha escolha. Opto por um Brasil que abra portas para que mulheres como a Vânia Liberato possam entrar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo