Guilherme Lacerda

Professor aposentado do Departamento de Economia da UFES. Foi diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro 'Devagar é que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico'

Opinião

A hipocrisia bolsonarista veste verde e amarelo

Se nada do que Bolsonaro faz incomoda a tantos seguidores só pode ser porque são iguais ao líder

Foto: MAURO PIMENTEL / AFP
Apoie Siga-nos no

Hipocrisia. Não há palavra melhor para entender a “Marcha para Jesus” do último sábado 24 no Espírito Santo, que se transformou em um acontecimento político de repercussão nacional. Já houve outras, todas com a mesma característica.  Em cada uma delas, milhares de participantes compunham uma onda de claridade étnica e de grupo social favorecido. Predominava no ambiente palavras de louvores a um político militar tido como “mito”, que recebiam com júbilo e orgulho.  

Etimologicamente, hipocrisia corresponde ao ato de dissimular, de falsificar, ou seja, que distorce a realidade e a mistifica. No Velho Testamento, o hipócrita foi a qualificação dada aos ímpios, aqueles que se afastaram de Deus e, no Novo Testamento, encontra-se em referência aos que expressam sentimentos e emoções fingidas. Hipócritas foram os fariseus que propunham fidelidade à tradição. 

É triste constatar a pregação cristã em nome de Jesus, a corporificação de Deus para nós cristãos, seja associada a discursos de intolerância e ameaças. Dentre os organizadores estão os defensores de um armamento amplo, geral e irrestrito da sociedade. Neste último evento, havia um carro alegórico com uma réplica enorme de um revólver 38. Negam o mandamento “Não matarás!”.

Grupos de evangélicos neopentecostais e católicos conservadores se uniram para exaltar um chefe que elegeram como um ser especial, um “mito”, que os lidera em nome dos bons costumes e dos valores cristãos. Quanta hipocrisia! Um dirigente que assusta o mundo por suas atitudes e manifestações, que fez loas à tortura, que agrediu mulheres e minorias, que rispidamente respondeu a um concidadão que deixasse de comprar feijão para comprar fuzil e que ameaça diuturnamente a democracia e as instituições que a integram, avançando insaciavelmente em uma escalada golpista. 

O passado deste dirigente maior o condena. Oriundo da caserna, teve uma carreira pouco exemplar. Depois, foi um político sem expressão por 28 anos, destacando-se por eleger seus filhos na “velha política”, a qual passou a denunciar em nome de uma irreal renovação. Uma grande farsa!  

O verde e amarelo predominam nas manifestações e, nesta última, inclusive, pintaram pombas – símbolos da paz. As atitudes encobrem comportamentos que maculam a nossa história. O entusiasmo com os EUA e com Trump sustentou até mesmo o gesto de continência para uma bandeira que não é a nossa. Um dirigente que tem como principal condutor da economia uma pessoa que mantém no exterior suas riquezas financeiras pessoais, que adota discursos e constantes atitudes de agressão a líderes internacionais e que fez do Brasil um pária internacional. Quanta hipocrisia!

A negação da realidade se espalha. Os manifestantes de agora deturpam o passado e encobrem o presente. Denunciam a torto e a direito a suposta corrupção de antes, inflada e mistificada pela mídia corporativa.  Que triste ver que os mesmos de antes continuam a ocupar ruas e avenidas sem pudor de terem apoiado a interrupção de um mandato presidencial legítimo. Um golpe que desorganizou profundamente o País e deu início a um período de horror, com impactos perversos sobre a sociedade, penalizando principalmente os mais pobres e levando à miséria e fome cerca de 33 milhões de patriotas.

Quanta hipocrisia afirmar que a corrupção acabou! A lista é longa: o vergonhoso “orçamento secreto” junto com as emendas para tratoraços, ônibus escolares e caminhões de lixo, os abusos e negócios nebulosos na educação, no meio ambiente “deixando a boiada passar”, no desprezo à ciência e nas transações reprováveis e comprovadamente ilegais na saúde, no momento em que o povo mais precisava de seus líderes. E tudo protegido imoralmente por 100 anos de sigilo. 

Quanta hipocrisia ver milhares desfilando em nome da família e dos valores cristãos e aplaudindo quem debochou das vítimas de uma pandemia que parou o mundo, de um dirigente incapaz de visitar um hospital ou uma família que perdeu seu ente querido, de um mandatário que caçoou de quem ficava sem ar com a Covid-19, de quem rispidamente respondeu que não era coveiro, não acreditava na vacina e, por isso, retardou sua aquisição e insistiu em tratamentos reconhecidamente inúteis. 

É indignante perceber que a marcha dos insensatos é composta predominantemente por profissionais liberais, funcionários públicos de alto e médio escalão, autônomos e empresários. Todos foram favorecidos em governos anteriores do partido que depois escolheram para odiar. Hipócritas! Foram tempos de estabilidade econômica, respeito às regras e contratos, disciplina fiscal e políticas eficazes que transformaram o Brasil e o fez respeitado em todo o mundo. 

Quanta hipocrisia quando se constata a mistificação de falsos líderes religiosos que esbravejam contra “comunismo e socialismo” em nome de um Cristo que repudiaria suas atitudes. Falsos profetas e líderes de uma verdadeira seita sectária. Esquecem-se que, em 2003, o ex-presidente da República que hoje atacam sancionou a Lei 10.825, a qual fortaleceu o princípio da liberdade religiosa, excluindo qualquer tipo de intolerância.  

É doloroso ver o entusiasmo de milhares de “bem-nascidos” com a pregação enganosa, hipócrita, de uma criatura que não acredita na democracia e se orgulha de dizer que sua especialidade é matar, que tem como bandeira os clubes de tiro e avisa que, se perder, o seu principal concorrente transformará cada um deles em bibliotecas.

A conclusão a que se chega é que se nada disso incomoda a tantos seguidores só pode ser porque são iguais ao líder. Se Jesus vivesse hoje, na certa, jamais participaria de uma marcha como a que se viu e nem deixaria que usurpassem o verde e amarelo de nossa pátria.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo