Diversidade

“A gente combinamos de não morrer, vocês combinaram de não nos matar”?

Assim como a lógica colonial de ataque a mulheres negras autônomas permanece, persiste a resistência feminista rumo a novos tempos.

Marcha das Mulheres Negras, na orla de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, em 2019. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Na célebre obra Olhos d’Água, a autora Conceição Evaristo traz consigo o manifesto bradado pelas comunidades negras, em uníssono, desde os períodos do tráfico transatlântico, “a gente combinamos de não morrer”. Combinamos, apesar dos séculos de massacre contra as populações negras nos países de origem colonial, apesar das múltiplas opressões às quais mulheres e crianças negras são submetidas, apesar do encarceramento em massa de mulheres e homens negros, nós combinamos e temos resistido, ainda que haja momentos nos quais não nos restem forças. Resistimos.

Contudo, além das perseguições históricas sofridas, temos de lidar com inimigos internos e com aqueles que se afirmam nossos aliados, mas não ponderam antes de atirar mulheres e negros aos leões, ainda que teoricamente estejamos do mesmo lado do front.

Na construção do imaginário colonial, mulheres negras foram alocadas como seres destituídos de sua humanidade, sendo constituídas a partir das funções e serviços que lhes fossem atribuídos. Termos como “mucamas” ou “as negras da casa”, cumpriam a função pedagógica de recordar que aquelas mulheres não eram um fim em si, mas sim uma tabula rasa, na qual os seus senhores poderiam fixar as imagens que bem desejassem. Na obra E eu não sou uma mulher?, a autora bell hooks nos traz ainda em seus primeiros capítulos, a necessidade que os mercadores de pessoas escravizadas tinham de desumanizar especificamente mulheres negras, para quebrar os seus espíritos e desmantelar a força cultural das matriarcas.

A lógica colonial não se extinguiu no pós-abolição, se estendendo por todo o imaginário social e permeando as imagens construídas sobre mulheres negras nos espaços culturais, religiosos e também nas trincheiras de batalha nas quais nos empilhamos ao lado daqueles que comungam conosco nas militâncias e ativismos políticos. Sendo mulheres negras, por vezes, nos sentimos alocadas no não-lugar que reside na intersecção entre o racismo e a misoginia. Nesse espaço tão duvidoso, no qual por vezes nos sentimos sitiadas e apartadas até mesmo de outras mulheres negras, as violências simbólicas e perseguições podem ganhar espaço.

Afinal, algo perceptível através da cultura do cancelamento e dos ataques contra mulheres negras no ativismo social, é que o desejo colonial de nos ter como tabulas rasas, ainda dispostas a incorporar os arquétipos ou imagens que outros desejam, persiste. Por vezes, aqueles que se afirmam aliados não aceitam, ainda que inconscientemente, o fato de que não somos manequins nos quais podem vestir e desvestir as suas próprias ideias.

 

A autonomia das mulheres negras não é vista com bons olhos quando não serve aos propósitos daqueles que se beneficiam dos nossos nomes, do nosso apoio e dos nossos discursos. Desta forma, muitos não compreendem o racismo arraigado no ato de não conceber mulheres negras como indivíduos completos e que possuem agência sobre si mesmas.

Como disse a ativista negra e lésbica Audre Lorde, “se eu mesma não me definisse, seria esmagada pelas fantasias de outras pessoas e comida viva”. A quem serve que mulheres negras estejam se auto-definindo? A quem serve não aceitarmos menos do que a agência total sobre nós mesmas?

Contudo, a questão se estende para além do cenário racial no qual mulheres negras estão inseridas e também abrange a experiência de todas as mulheres, em especial, aquelas que pertencem às classes mais vulneráveis. O anseio pela repressão daquilo que somos e a ilusão de controle que outros têm sobre aquilo que falamos ou pensamos, exibe que em nossa sociedade mulheres ainda não estão autorizadas a falar, a ser e a estar.

Para que sejamos ativistas sociais, precisamos estar vivas. Para que sejamos nós mesmas, precisamos resistir. Por isso, uno a minha voz ao coro de Conceição Evaristo, “a gente combinamos de não morrer”. Mas questiono, vocês combinaram de não nos matar?

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