A fome e o teto de gastos

Não há nada mais antagônico ao mínimo existencial do que a persistência, numa sociedade, de pessoas em situação de fome

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Josué de Castro, em Geografia da Fome, afirma que esse problema, no Brasil, é consequência de passado colonial do país, acentuado no processo de urbanização com o quase abandono do campo. Seu enfrentamento assume caráter constitucional com a Carta Magna de 1988, que representa um conjunto de novas regras sociais, econômicas e políticas, ancoradas em instituições também renovadas, mais justas e mais emancipadoras para as pessoas em geral. A questão passa a ter como princípio nuclear a dignidade da pessoa humana, e, como objetivo, a erradicação da pobreza e da marginalização, e é posteriormente reforçada com a inclusão, no artigo 6º da Constituição, do direito fundamental à alimentação.

Políticas e programas articulados, com perspectivas e instituições multissetoriais, participação social e especialmente investimento público, possibilitaram ao Brasil, em 2014, sair do Mapa Mundial da Fome. Em relatório intitulado “Superação da Fome e da Pobreza Rural – Iniciativas Brasileiras”, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a partir da redução em 82,1% do número de pessoas subalimentadas, anotou que a maneira como o país enfrentou a questão traduzia “boas práticas”, a serem eventualmente replicadas por outros países da América Latina e do Caribe ou da África.

A Emenda Constitucional 95, de 2016, que instituiu o chamado “teto de gastos”, veio com o objetivo declarado de reverter o “quadro de agudo desequilíbrio fiscal” do Governo Federal, identificando como raiz do problema fiscal o crescimento acelerado da despesa pública primária, principalmente por conta do aumento de gastos presentes e futuros em diversas políticas públicas. Na sua exposição de motivos, não há uma única referência a avaliações a respeito do impacto de suas medidas de austeridade fiscal sobre a pobreza, a fome, a desigualdade e os direitos humanos.

Dados do IBGE (Pnad 2013 e POF 2017-2018) revelam que, no período entre 2013 e 2018, a ocorrência da fome teve um aumento de 8% ao ano. Entre 2018 e 2020, esse aumento é acelerado e passa a ser de 27,6% ao ano, conforme levantamento do I Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VigiSAN). Em números absolutos, eram 10,3 milhões de pessoas que passavam fome em 2018, e em 2020, 19,1 milhões. Segundo a pesquisa 2017-2018 do IBGE, 5,1% da população de 0 a 4 anos de idade e 7,3% da população de 5 a 17 anos conviviam com a fome. Já o II Inquérito Nacional informa que, em 2022, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer. A fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos – de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022.

O “mínimo existencial”, de acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, é um limite insuperável para o teste de constitucionalidade de qualquer medida administrativa ou judicial. A fundamentação ética para esse direito, na formulação de Habermas, assenta-se no princípio democrático de que é preciso assegurar condições sociais mínimas para que cada indivíduo possa atuar na esfera pública como cidadão. Não há nada mais antagônico ao mínimo existencial do que a persistência, numa sociedade, de pessoas em situação de fome.

A fome não se presta a curas espetaculares e emergenciais. Requer intervenção contínua e multissetorial, além do enfrentamento das acentuadas desigualdades de classe, raça e gênero que marcam a sociedade brasileira. É matéria concernente ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário. A ausência de tal empenho significa o abandono do atual modelo constitucional e o fracasso da nossa nação. Precisamos deixar para trás esse crime. Desta vez, para sempre.


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