Opinião

A entrevista de Bolsonaro foi um deserto de ideias e de propostas

A indigência do vocabulário, os conhecidos problemas de expressão oral, o chamado “body language” foi todo ele pobre, sem graça e sem novidade

Foto: Reprodução/TV Globo
Apoie Siga-nos no

O que achei da entrevista? Bem, a minha primeira impressão foi que o senhor Jair Bolsonaro esteve sempre na defensiva. Em nenhum momento comandou a entrevista, em nenhum momento introduziu um tema novo ou deu uma resposta convincente. Seguiu, nunca liderou. Sempre na defensiva. Estou até tentado a concordar com os seus apoiadores de que os entrevistadores foram firmes (firmes, não agressivos) como não é costume na política brasileira. Sim, não deixaram passar uma, e tivemos até que assistir ao momento penoso em que Bolsonaro acusa o jornalista de fazer uma afirmação falsa e o jornalista, no final da resposta, educadamente, apresenta a prova de que afinal, quem estava a faltar á verdade não era ele, mas o seu entrevistado – “o senhor chamou canalha ao ministro Alexandre de Moraes”. O momento é singular. 

A atitude rigorosa e sóbria dos jornalistas foi importante. Desde logo, para a qualidade do debate público, indispensável à democracia. A entrevista não foi fácil para o entrevistado, nem poderia sê-lo depois do que se passou nestes últimos quatro anos. Mas a atitude é importante também, a meu ver, porque ela reflete o sentimento majoritário dos brasileiros. Os jornalistas, no fundo deram voz a esse sentimento – não, não estamos contentes com a tentativa de deslegitimar as eleições; não, não estamos satisfeitos com o que se passou na pandemia, com o que se passou no desmatamento, com a evolução da economia, com a instabilidade governativa da área da educação. E também não estão satisfeitos com a aliança com o centrão, não porque ela seja ilegítima, mas porque contraria uma promessa eleitoral. Este parece-me ser o aspecto mais importante da entrevista – as perguntas dos jornalistas refletem o mal-estar do Brasil com seu presidente. 

Lula tem suficiente experiência para perceber que nestas eleições ele não deve ser apenas o candidato anti -Bolsonaro, mas o candidato pós-Bolsonaro

Depois, talvez seja importante não esquecer que o candidato está mais de quinze pontos atrás nas pesquisas. Não está em condições de jogar na defensiva, mas de apostar no ataque. Para quem tem memória, nas eleições de 2018 Bolsonaro tomou a iniciativa e comandou, em grande medida, os temas da entrevista. Conseguiu até os melhores momentos da noite ao apresentar a inacreditável falsidade do chamado “manual kit gay” e ainda lembrou o apoio da rede Globo à ditadura. Por maus motivos, é certo, mas dessa vez Bolsonaro saiu por cima, na entrevista. Nada disso aconteceu desta vez. 

Acresce que as dificuldades do candidato ficaram agora mais visíveis. A indigência do vocabulário, os conhecidos problemas de expressão oral, o chamado “body language” foi todo ele pobre, sem graça e sem novidade. Até a repetição da “cola” na palma da mão foi uma desgraça – depois de quatro anos como Presidente, os brasileiros descobrem que ele ainda precisa de ser recordado das coisas mais elementares. Enfim, o Presidente foi igual a si próprio. 

E para quem acha que a entrevista não foi um desastre, gostaria de lembrar que o que estava em causa naquela entrevista não era o diálogo com as pessoas que acham que a pandemia se agravou com o confinamento. As pessoas que acreditam, como disse o presidente, que houve mais infecções em casa do que haveria se as pessoas estivessem na rua (como sublinhou, espantado, o próprio entrevistador) já decidiram o seu voto nele. Não, o que está em causa é o voto das outras pessoas que levaram a sério a pandemia e acreditam que os chamados “lockdowns” foram uma forma eficaz de salvar vidas. Salvar vidas. Salvo melhor opinião, que não vislumbro, o candidato que diz uma coisa destas não atrai nenhum voto indeciso para o seu lado. Não atrai nenhum voto do eleitorado moderado. Não atrai nenhum voto das pessoas politicamente conscientes. E são esses votos que estão em causa, não os votos dos fanáticos. Esses já estão decididos. 

Depois, não sei se repararam, não houve uma única palavra sobre o futuro. O mínimo que se pode dizer é que a entrevista foi um deserto de ideias e de propostas políticas. É absolutamente extraordinário que não tivesse havido uma única resposta, que identificasse os problemas do país e apontasse novas soluções. Todos os que assistiram à entrevista sem parcialidade perceberam que deste candidato a única coisa que se pode esperar é mais do mesmo. E quando isso acontece, quando uma entrevista eleitoral se concentra apenas no balanço político do passado, é uma entrevista sem esperança, sem confiança, sem expectativa. O meu balanço final da entrevista é este – nada de empate, mas a tentativa desesperada de esconder o esgotamento político. 

Finalmente, uma última observação. A entrevista do Presidente será discutida e criticada democraticamente pelos outros candidatos. Hoje será a vez de Ciro Gomes que, como tem feito até aqui, não deixará de falar de programas de ação e de medidas políticas. Depois, será a vez de Lula, o favorito nestas eleições. Muitos dos seus eleitores estarão à espera de que ele critique e ataque as falsidades das respostas do Presidente. Talvez assim seja. Mas Lula tem suficiente experiência política para perceber que nestas eleições ele não é, nem deve ser, apenas o candidato anti -Bolsonaro, mas o candidato pós-Bolsonaro. Grande parte do eleitorado brasileiro espera um candidato que seja capaz de propor um novo pacto democrático e um novo caminho de maior justiça social e de mais crescimento econômico. Algo que fale de futuro e que tenha horizonte. Algo que transmita esperança. Algo que soe como um novo começo. Nesta entrevista, nada disso aconteceu. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo