Marcos Coimbra

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Sociólogo, é presidente do Instituto Vox Populi e também colunista do Correio Braziliense.

Opinião

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A direita avestruz

Como a ave terrestre, ela possui um estômago capaz de digerir todo tipo de porcaria. Mas não será tão fácil deglutir as esfarrapadas desculpas de Bolsonaro sobre as joias do governo saudita

Foto: Miguel SCHINCARIOL / AFP
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Os diamantes das arábias são um bom momento para avaliar até onde vai a capacidade de engolir camelo dos bolsonaristas. O que estará pensando do chefe a vasta metade do País que votou em seu nome e que, a crer no que dizem as pesquisas recentes, continua a gostar e aprovar aquilo que combinaram chamar seu “trabalho”?

Convenhamos que é um camelo de todo tamanho. Não há, na história brasileira, um escândalo sequer remotamente semelhante: um presidente com a desfaçatez de querer se apoderar de uma maleta de diamantes e a cara de pau de fazer com que funcionários públicos e instituições se virem para satisfazer sua vontade. Talvez ache que as joias são dele por direito, mas isso não muda nada. Apenas o obriga a apresentar os motivos pelos quais, na sua opinião, o rei da Arábia Saudita gosta tanto dele. Não nos esqueçamos de que estamos falando de uma segunda maleta, pois há outra da qual o capitão já se apoderou, igualmente recheada de joias.

Tudo cheira mal nessa história. O governo saudita quis dar ao brasileiro, em troca de nada, um “presente”? Cujo valor, considerando as duas remessas, provavelmente ultrapassa 5 milhões de dólares? Um regalo maior dos que destinou ao presidente dos EUA e à rainha da Inglaterra, países muito mais relevantes para seus interesses? Que foi encaminhado ao felizardo de maneira quase clandestina, sem nenhum protocolo, na bagagem de mão de um assessor? A respeito do qual se mantém silencioso, mesmo passadas duas semanas da revelação do caso? Estivessem os sauditas convencidos de que agiram dentro da normalidade e da moralidade, teriam tido amplo tempo para se explicar e limpar a barra de seu valioso “amigo”.

Salvo por uns três ou quatro gatos-pingados no Congresso, alguns milicos e seus bispos de estimação, Bolsonaro está sozinho. Tenta resolver a situação no grito, proclamando-se inocente, mas não tem sequer um argumento que mereça o nome. Nenhuma voz respeitável se ouviu para defendê-lo. Terá o escândalo afetado sua imagem perante os milhões de brasileiros que, em outubro, se mostraram satisfeitos com ele? Que preferiram tê-lo por mais quatro anos, confortáveis com suas atitudes e “realizações”? Que acreditaram que é uma pessoa de bem, criticável apenas por pequenas bobagens?

Foram feitas diversas pesquisas desde a eleição. Todas apontavam para o mesmo resultado: quatro meses e meio depois da eleição e dois meses e meio depois do início do novo governo, a opinião pública estava como que congelada. Bolsonaro preservava o tamanho com que saíra da urna e contava com o apoio de metade do País.

É impossível ter certeza, pois as pesquisas atuais são pouco confiáveis, mas é razoável supor que esse era o cenário antes do escândalo. Terá mudado? Bolsonaro foi pego com a boca na botija e será, ao que tudo indica, obrigado a se explicar perante a polícia, o Ministério Público e a Justiça. Quanto à opinião pública, especialmente ao seu eleitorado, só o tempo dirá.

Há bolsonaristas que vão gritar que é tudo mentira, que nada aconteceu, mas serão poucos. O próprio capitão confessou que os diamantes existem, que alguns estão com ele e tentou ficar com todos. Alguns vão fingir que acreditam na historinha, segundo a qual as joias entraram irregularmente no País, mas seriam legalizadas depois. É improvável, contudo, que se convençam de fato, pois a versão faz água por todos os lados.

O melhor caminho para Bolsonaro talvez seja abdicar do discurso da diferença e apostar no da semelhança: não podendo se dizer honesto, assumir-se desonesto. Como o Tavares, velho personagem do Chico Anysio, o canalha que se justificava com o bordão: “Sou, mas quem não é?”

Quem sabe funciona. As classes médias brasileiras, espremidas entre a falta de perspectiva e a fantasia do dinheiro rápido, há tempo jogaram fora o moralismo. Para elas, vale tudo. Uma parte grande da classe trabalhadora vive tão mal, sofreu tanto nas mãos de picaretas, foi tão mal informada pela mídia que acha que todo político é igual e nenhum presta. Nem acompanha as notícias. Descrença, desesperança e cinismo criaram uma cultura onde um pilantra como Bolsonaro pode nadar de braçada.

Não há no mundo direita como a brasileira. Tem um estômago de avestruz, engole todo tipo de porcaria, mais que em qualquer outro lugar. Deve ser nisso que Bolsonaro aposta, dando uma banana para a plateia. O golpe dos diamantes talvez não dê certo, mas tudo indica que foi apenas mais um. Nem o vigarista mais esperto ganha todas. •

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A direita avestruz’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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