Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

A democracia é relativa?

A democracia é relativa, sim. Relativa, absolutamente, a princípios concretos – se me permitem a brincadeira com esse falso paradoxo

Foto: Ricardo Stuckert/PR
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A resposta deveria ser uma outra pergunta: relativa a quê? Mais uma vez, estamos discutindo a democracia. Agora, no que diz respeito ao seu próprio conceito e aplicação. Infelizmente, não por razões alvissareiras, mas, para outra vez, defendê-la.

Para quem não acompanhou o noticiário, esclareço o contexto: o nosso atual presidente, em entrevista para um rádio junto ao ministro da Comunicação, voltou a defender que o atual regime venezuelano é uma democracia. E o fez com uma novidade curiosa: questionado pelo entrevistador, Lula afirmou que a democracia é relativa.

Mas relativa a quê, Lula? Para ele, relativa à compreensão particular, individual, subjetiva do sujeito. Nessa lógica, temos de volta – e, graças a Deus, apenas na retórica – a conversão de fatos e conceitos em meras opiniões e superstições convenientes que tanto nos acompanharam ao longo de quatro anos de hegemonia do bolsonarismo neste país.

À fala de Lula seguiu-se um intenso debate virtual recheado de falsas polêmicas, incompreensões, ignorâncias. Os argumentos giravam em torno de uma falsa simetria: se o conceito de democracia não é relativo, então é absoluto. E nada, disseram tantos, é absoluto. Muito menos no campo das ideias.

Será mesmo que essa é a questão? Não creio.

A democracia é relativa, sim. Relativa, absolutamente, a princípios concretos – se me permitem a brincadeira com esse falso paradoxo. Desde a Grécia Antiga, discute-se formas de governo distintas no intuito de buscar os modos mais razoáveis, justos e eficazes de lidar com o exercício do poder e a vida coletiva. Democracia, desde Platão (um antidemocrata convicto), nunca foi uma aristocracia, uma monarquia, um oligarquia, uma oclocracia, uma timocracia ou, principalmente, uma tirania.

E se sempre tivemos clareza do que é uma democracia, é porque seus elementos constitutivos, ainda que mínimos, são reconhecíveis, identificáveis e discerníveis, nunca se confundindo com as formas de governo que lhe são alternativas. É óbvio que, ao longo da história, a experiência democrática foi ganhando incrementações e novos contornos, assim como novas exigências que findaram por constituir aquilo que o estudioso David Held cunhou de Modelos de Democracia. Mas tudo isto com vistas à ênfase em determinados aspectos constitutivos e originários do conceito de democracia.

Na Grécia Antiga já estava o cerne primordial da ideia de democracia: decisões concernentes à coletividade, à comunidade política, à esfera da cidadania devem ser tomadas por meio de processos deliberativos, por meio da troca de razões públicas entre os cidadãos. Obviamente, a franquia da participação política na experiência ateniense passava longe de ser universal, ainda que os princípios defendidos ensejassem universalismos. Não há democracia sem que decisões sejam tomadas por meio de processos deliberativos, sejam eles de forma direta ou indireta por meio da representação política.

A experiência moderna, que nos entregou o modelo de democracia liberal, funde a noção de governo representativo com princípios fundamentais da forma de governo democrático. Daí deriva – com óbvias influências das experiências romanas de República – a noção do Estado de Direito e, continuadamente, num percurso histórico, a extensão do sufrágio uniforme e universal e o próprio protagonismo dos Direitos Humanos, uma invenção essencialmente liberal.

Na experiência moderna de democracia, temos ênfases claras e condições imprescindíveis para que uma forma de governo seja denominada como democrática, a exemplo das liberdades civis e políticas. Mas vamos adiante. Não há possibilidade de um regime democrático prescindir da existência de condições básicas como:

(1) funcionários eleitos;
(2) eleições livres, justas e frequentes;
(3) liberdade de expressão;
(4) fontes de informação diversificadas;
(5) autonomia para as associações;
(6) cidadania inclusiva.

Não estamos, aí, a falar de uma nova democracia, mas de um novo modelo de democracia que não se confunde com tiranias ou autocracias. O modelo de democracia iluminista não faz da experiência ateniense uma não-democracia, por exemplo. Não a torna uma outra coisa ao bel-prazer da militância relativista de plantão.

Obviamente, como sustenta o mestre Norberto Bobbio, a democracia não é um projeto acabado, mas uma tarefa. A democracia nunca estará plenamente realizada enquanto tivermos a saudável possibilidade de realizar seus princípio norteadores presentes em seus nascedouros.

Podemos caminhar pela estrada que nos leva a mais democracia. Ou podemos, também, fazer o caminho inverso. E é exatamente este que o tão defendido regime venezuelano tem feito desde que Hugo Chávez foi eleito pela primeira vez na Venezuela. Inclusive, estamos a falar do sonho de consumo de Jair Bolsonaro e seus militares. É daí que vem sua enorme obsessão com a Venezuela.

E, no fim, foi isso e nada mais que estava em jogo nesse debate: a tentativa de sequestrarem o conceito de democracia para torturá-lo, vulgarizá-lo e contorcê-lo a ponto de fazê-lo encaixar nas autocracias de que se gosta, sob a falsa polêmica da oposição entre “relativo” e “absoluto”.

Porque, ao fim e ao cabo, quem diz que o conceito de democracia é relativo também deve relativizar o Estado de Direito. Nessa perspectiva, o problema nunca esteve naquilo que Sergio Moro fez, mas contra quem fez, por exemplo. Nenhum problema com o que os militares quase fizeram no último janeiro, mas em nome do quê fariam.

Tudo bem. Defendam o que quiserem, mas, por favor, deixem a democracia fora disso.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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