

Opinião
A cultura segue na vanguarda da democracia
Quem desafiou tudo para se contrapor à ditadura mais uma vez ergueu o canto contra o arbítrio dos golpistas


A história não se repete, mas frequentemente ecoa. Em 1968, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e uma geração de artistas tomavam as ruas para denunciar a ditadura militar e a escalada autoritária que culminaria no AI-5, o golpe dentro do golpe. Em 2025, essa mesma trincheira musical se recompõe. Os nomes consagrados, agora ao lado de Djavan, Paulinho da Viola, Geraldo Azevedo, Ivan Lins e da potência da nova geração, voltam às avenidas. O cenário é outro, mas o princípio é o mesmo: a defesa intransigente da democracia.
Desta vez, o alvo é duplo e claro: a rejeição veemente a qualquer proposta de anistia para Jair Bolsonaro e todos os golpistas de 8 de janeiro de 2023 e o repúdio total à PEC da Blindagem, que busca criar um foro privilegiado ampliado e impedir a Justiça de investigar e punir parlamentares acusados de crimes.
Aliás, é bom lembrar Ulysses Guimarães, que dizia que a única coisa que mete medo em político é o povo na rua. E se essa máxima é verdadeira, já será possível ver a angústia que será vociferada nos discursos do bolsonarismo, sustentáculo das duas anti-pautas que mobilizaram os atos deste domingo em todo o Brasil. É possível antecipar discurso que será feito nas tribunas do legislativo, denunciando artistas “comprados pela Lei Rouanet”, que se mobilizaram neste domingo.
A Rouanet, criminalizada por Bolsonaro, não permite tal coisa, e a consciência política de nossa classe artística jamais esteve à venda. A falácia, na verdade, expõe o projeto venal e desrespeitoso da extrema-direita. A resposta mais potente veio das ruas: um coro democrático de quem sabe discernir o que é verdade das fake news e defende, intransigentemente, a cultura e a democracia. Quem desafiou tudo para se contrapor à ditadura, mais uma vez ergueu o canto contra o arbítrio dos golpistas.
Este não é um ato de nostalgia; é um movimento cívico urgente. A proposta de anistia é um acinte à memória das vítimas da Covid-19, e um ataque à democracia, que deve ter seu sistema de pesos e contrapesos. Justiça é o nome que devemos dar à responsabilização daqueles que agrediram a nossa Constituição em um ataque covarde às instituições, que tentaram um golpe de estado e tramaram assassinatos, além de vandalizarem o patrimônio cultural. E do auge do sentimento de impunidade, que foi atravessando as barreiras debaixo dos olhos de todas e todos, surge a PEC da Blindagem. Sob o disfarce de “igualdade”, se institucionaliza a impunidade e corrói o princípio básico de que ninguém deve estar acima da lei.
A música brasileira sempre foi a consciência sonora do país. Nos anos 60, o grito era pela própria existência da democracia, contra uma ditadura que eliminava opositores, cerceava direitos e não prestava contas a ninguém. Hoje, com a democracia conquistada, a luta segue: o combate agora é por justiça, igualdade e transparência. A democracia é plena quando ninguém está acima da lei com privilégios indevidos. Os que atentam contra o regime democrático devem ser responsabilizados nos marcos do Estado de Direito.
Por isso, os movimentos que tomaram as ruas neste domingo clamaram pela garantia de que os atentados contra a democracia não fiquem impunes e que o poder político não seja um salvo-conduto para crimes de qualquer natureza. As manifestações que eclodiram por todo o país, galvanizadas pela liderança moral desses artistas, transcendem o protesto. Elas têm o poder concreto de mudar a conjuntura rumo ao fortalecimento do campo democrático e popular.
Quando artistas de tamanha grandeza e respeito falam, o país escuta. Eles mobilizam a opinião pública, dão coragem aos hesitantes e amplificam o grito que vem das ruas: o povo brasileiro não aceita a barganha da impunidade. Essa pressão cultural e popular é fundamental para isolar os defensores dessas medidas injustas e anti-democráticas, reforçando o clamor social por investigação, processo e punição exemplar para todos os envolvidos nos atos golpistas.
Da mesma forma que a cultura em 1968 não se calou, hoje não se calará. O movimento artístico está novamente na vanguarda, lembrando à nação que a democracia não é um dado adquirido, mas uma construção diária que exige vigilância e coragem. A canção de protesto, agora, tem letra e música bem definidas: Anistia, Não! Blindagem, Não! Responsabilização, Sim!
É ao som dessa canção democrática e popular que escreveremos o próximo capítulo da nossa história. Viva a cultura e a democracia!
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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