Opinião

A culpa de Rússia, Otan e União Europeia: a construção da verdade é coletiva

A História nos ensina que nada substitui nosso próprio refletir, individual e coletivo

Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. Fotos: STR/Ukrainian Presidential Press Service/AFP e Sergei Guneyev/Sputnik/AFP
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“A Rússia não deveria ter invadido a Ucrânia, mas a culpa dessa guerra é da Otan e da União Europeia.”
Frentista de posto ex-Petrobras, em Jundiaí, interior de São Paulo

A política e a religião guardam muitas semelhanças, habilmente exploradas por políticos, marqueteiros e pastores neopentecostais.

Uma dessas similitudes diz respeito à capacidade de nos surpreenderem, aportarem mais do que almejaríamos.

Foi a minha surpresa ao ouvir daquele frentista, na semana passada, a melhor definição sobre a gênese da guerra entre a Otan e a Rússia, na Ucrânia.

Refletindo a respeito, notei que a religiosidade e a política buscam o uno, a unidade, a verdade indivisível.

De fato, a política também deve aspirar à justiça, mas na base dela encontram-se homens e mulheres falíveis, a construírem-na, mais do que recebê-la pronta, procurando-a desde pontos de vista, lugares de fala e luta muito distintos.

Por isso, causa admiração que uma pessoa possa sintetizá-la de forma brilhante, refletindo entre as névoas e trevas da desinformação altamente ideologizada, principalmente em um País reduzido à condição de colônia, como é o Brasil, desde o golpe de 2016 e até pouco antes.

Vivemos uma cultura de anulação: jovens versus idosos; acadêmicos v. leigos; conservadores v. progressistas: pressupomos a ignorância uns dos outros.

Vamos nos anulando, uns aos outros: opiniões, caminhos e destinos.

Nesse processo nulificante, anulamos nós mesmos, nossa capacidade reflexiva, analítica e expressiva. Pouco refletimos; quando o fazemos, escassamente analisamos; se o fazemos, temos pruridos em comunicar nossas conclusões, por temor, vergonha ou deslocamento em relação ao grupo.

Esse processo aplica-se a pessoas e nações.

Por exemplo, na Europa da atualidade. Com toda a riqueza e poder, o continente se anulou: a diplomacia europeia não tem qualquer importância – no sentido próprio da palavra, de política externa independente; nos foros internacionais, a voz coletiva, da União Europeia, representa apenas meia dúzia de conglomerados financeiros, extrativistas e industriais; resultando que alguns países pagam seus serviços exteriores, mas poderiam deles prescindir, como é o caso do país de meus avós paternos, a Itália, cuja única causa relevante em âmbito internacional é a abolição da pena de morte – individual, pois com a coletiva concorda, como se viu no caso da invasão da Líbia.

No entanto, atrelar-se a um suserano retira-nos forçosamente a liberdade, a capacidade de ver, pensar e agir, tão cara a São João XXIII, o Papa Bom, como ficou conhecido aquele que ressaltou a importância da teoria e da prática do bem, em encíclica própria, já no início dos anos 60.

Em interessante matéria de CartaCapital, de Carlos Drummond, vemos a diferença entre aliar-se a uma potência emergente ou a uma decadente. Lemos na citação do professor P. Gallagher, da Universidade de Boston: “… a China forneceu enormes quantias de financiamento aos governos latino-americanos para projetos de infraestrutura, mineração e energia…canalizou mais de 119 bilhões de dólares em empréstimos e linhas de crédito a governos latino-americanos desde 2003. A região acompanhou o boom chinês e cresceu a uma taxa anual de 3,6% de 2003 a 2013, em forte contraste com as duas décadas anteriores dominadas pelo consenso de Washington, quando a expansão foi de 2,4% ao ano e a desigualdade aumentou…”.

Muitas das vezes em que se questionava a UE, por concentrar renda; ser subalterna; e ter política externa retrógrada, colonialista, ouvia-se frequentemente em resposta: mas evita a guerra, em um continente historicamente belicoso. O que dizer agora que até esse argumento, in extremis, desapareceu?

Não sabe esse continente como se constitui sua riqueza? De onde vem a ração para seus porcos, por exemplo? Em Travessia (editora Civilização Brasileira), de Eduardo Moreira, temos um quadro de capital do agronegócio, em que se cultiva a soja que servirá de ração para os animais do Norte: “Dourados, a cidade rica onde fazendas com pistas para aviões particulares e haras com cavalos de raça que custam milhões ficam a poucos quilômetros de crianças que comem restos de comida para sobreviver, é o décimo círculo do inferno.”

A História nos ensina, portanto, que nada substitui nosso próprio refletir, individual e coletivo.

Com efeito, em A revoada dos galinhas verdes – uma história da luta contra o fascismo no Brasil (editora Veneta), de Fúlvio Abramo, vemos como um blefe, um embuste, uma mentira, levou a humanidade à tragédia do fascismo e à Segunda Guerra Mundial: “Outubro – 27/10 a 29/10 – Itália – Início da Marcha fascista sobre Roma. Um blefe bem-sucedido: bandos fascistas, mal armados, mal alimentados e desorganizados chegam às portas de Roma, que tinha forças regulares perfeitamente preparadas para desbaratar os invasores. Mas o Exército não fez nada, e o rei Vitor Emanuel III apenas saúda Mussolini, que chega na manhã do dia 30, no conforto de um vagão-leito, para tomar o poder como novo chefe de governo”.

A construção da verdade é coletiva; a interpretação, individual; a síntese e a ação, de cada um e cada uma, de todas e todos a liberdade, a soberania, o futuro.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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